quinta-feira, maio 10, 2012

Teatro e Cultura

Nunca, até agora que estamos a assistir ao desaparecimento da própria vida, tanta controvérsia houve sobre civilização e cultura como a que hoje em dia se nos depara. E um curioso paralelo se verifica entre esta decadência generalizada da vida, que está na raiz da nossa desmoralização actual, e o vivo interesse que testemunhamos por uma cultura que jamais coincidiu com a vida, uma cultura concebida antes para a tiranizar.
Antes de prosseguir nas minhas considerações sobre cultura não posso deixar de observar que o mundo enferma de fome e ignora a cultura e que a tentativa de reconduzir à cultura um pensamento ocupado apenas pela fome é um recurso por completo artificial.
O que acima de tudo importa, assim me parece, é não tanto defender uma cultura cuja existência jamais excluiu a fome e libertou o homem da preocupação de uma vida melhor, como extrair daquilo que se denomina cultura umas quantas ideias vectoriais cuja energia motriz equivalesse à da fome.
Antes de mais nada, necessitamos de viver, necessitamos de acreditar no que nos faz viver e em que algo nos faz viver, acreditar que não estamos condenados a que esse indefinido produto do misterioso íntimo de todos nós para sempre nos obceque com uma ansiedade exclusivamente gástrica. O que pretendo frisar é que, se o que mais nos importa é comer, maior importância será ainda não desperdiçar unicamente nessa única preocupação todo o nosso mero potencial de fome.
Se o traço característico da nossa época é a confusão, distingo perfeitamente na raiz desta confusão uma ruptura entre as coisas e as palavras, entre as coisas e as ideias e os signos que as representam.
E a causa de tudo isto não é decerto a carência de sistemas filosóficos, pelo contrário, o facto de serem inúmeros e contraditórios caracteriza a nossa velha cultura francesa e europeia. Todavia em que é que estes sistemas afectaram jamais a vida, a nossa vida? Não pretendo afirmar que os sistemas filosóficos devam ser postos e prática directa e imediatamente, mas das alternativas que passo a expor uma terá de ser verdadeira: Ou estes sistemas estão dentro de nós e impregnam o nosso ser a ponto de servirem de manutenção à própria vida (e se é este o caso, de que servem os livros?), ou então não penetram em nós e não têm, por consequência, possibilidade de prover à subsistência da vida (que importa, neste caso a sua desaparição?).
Temos de insistir numa ideia de cultura-em-acção, cultura a desenvolver-se dentro de nós como um novo órgão, uma espécie de segundo hálito; e na de civilização como uma cultura aplicada, a controlar até as nossas acções mais subtis, uma presença de espírito. A distinção entre cultura e civilização é artificial e designa duas palavras para significar uma função idêntica.
(…)
Posto isto, podemos começar a formar uma concepção de cultura, uma ideia que, antes de mais nada, é um protesto. Um protesto contra o insane constrangimento imposto à ideia de cultura, ao reduzi-la a uma espécie de panteão inconcebível e ao provocar assim uma idolatria em tudo idêntica ao culto das imagens nas religiões que relegam os seus deuses para panteões.
Um protesto contra uma concepção de cultura distinta da vida, como se dum lado estivesse a cultura e do outro a vida, como se a verdadeira cultura não fosse um meio requintado de compreender e exercer a vida.
A biblioteca de Alexandria pode ser destruída pelo fogo, pois há outras forças muito para além do papiro. Podemos ser temporariamente privados da nossa capacidade de descobrir estas forças, mas a sua energia não será suprimida. É até conveniente que as excessivas facilidades de que fruímos deixem de estar ao nosso alcance, que as formas estabelecidas tombem no esquecimento. Uma cultura sem espaço nem tempo, apenas limitada pela capacidade dos nossos próprios nervos, reaparecerá assim com energia redobrada.
(…)
O que fez com que a cultura deixasse de progredir foi a nossa concepção ocidental de arte e o proveito que dela tentamos obter. Contrariamente à forma como são universalmente consideradas, a arte e a cultura não podem ser entre nós encaradas em conjunto! A verdadeira cultura opera pela exaltação e pela força, enquanto que o ideal europeu de arte tenta lançar o espírito numa atitude que é distinta da força e que se limita a assistir à sua exaltação. Tal noção é inactiva, sem o mínimo préstimo, e provoca a morte iminente. Se múltiplo retorcer e enroscar da serpente Quetzalcoatl se pode considerar harmonioso é porque exprime o equilíbrio e as variações duma força latente. A intensidade das formas está aí apenas para atrair e dirigir uma força que, em música, produziria uma intolerável gama de sons.

- Antonin Artaud
(tradução de Fiama Hasse Pais Brandão)
in
O Teatro e o seu duplo, Fenda

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