Não há quem me acorde, e sofro mais
de noite entre sonhos já fracos,
magoados de tanto absurdo e uma gente
que mal me quer, mas olha muito e diz
de novo tudo, outra e outra vez.
Tenho este quarto, eu e uma garrafa
de soro, lâmpada que pinga e espalha
lentidão sem romper nem queimar.
Levanto-me quantas vezes? Sinto
vidro no sangue e cada gesto destrói
o seu alcance.
De barriga para o alto, no chão, as latas
de cerveja e o rádio perdidos de riso.
O cinzeiro espera. Pilhas de cartas,
livros inúteis e cadernos. Tinta
entornada e uma juventude só
fedendo a suicídio e glória.
Se, enfim, já não espero grandezas,
então digo-me: deixa a caneta, não maces.
Melhor largado o verso, só a desistência
e sair, só.
Caminhos por onde o dia leva tudo,
projectos, grandes ideias e ritmos de
susto para quem sempre fica
de fora. Essa narrativa ofegante,
um caos com pormenores líricos, leves,
imprecisas cadências. A única música
que ainda suporto. Engrenagem
das coisas que ouço, flores vagarosas
e o voo zonzo de uns pontos nesse
calor surdo a acender aromas. Um resto
de intimidade, de nobreza.
Baixando da chilreante tagarelice que
a manhã deixou dar ordens, os pardais
agora tossem e a tarde senta-se entre
tudo o que se vê corrigido. Uma
delicadeza meio forçada. Logo, os velhos
lançam dados no meio da praça,
migalhas de pão e as unhas do diabo.
Uma revoada de pombos estala em torno
do meu pensamento, mas eu juro
que não foi nada. Atrás da cabeça rola
um sol esquivo, frio, e esta luz avessa
dividindo lugares com a nossa
memória. Ao pé segue o rio
num gargarejo enquanto os meus passos
se alongam e afundam no cansaço.
De pedra, bancos, jardins choramingando
solidões tão renhidas. Corpos sem
dono, entre meias palavras e esse riso ralo
que vive de horas estranhas, composições
vazias. A paciência de uma melodia
débil e receosa que anota outra
das tuas profecias desinteressadas.
De roda, um infeliz bando de sombras
gemendo os aleluias do desespero.
Um fósforo ainda ergue alguns traços
desse rosto, irreconhecível, igual ao teu,
ao meu. Contemplar o impossível
enlouquece, olhar o escuro
comove-nos. Não é que um homem
não chore, mas um dia até isso lhe
falta. Tudo o que o leva são assobios
bem vagos, soluços desses que arrastam
a noite para um fim qualquer, sem jeito
nem moral.
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