Sobre o homem não sabemos quase nada. A ciência actua sobre o mundo, e sobre ele pouco actua. Continua denso, tantas vezes impenetrável o mistério que acompanha a sua caminhada. «Eu, que no espírito e nos nervos sempre tive tudo o que era preciso para enlouquecer» ― pensa Baudelaire em 1860. No entanto, Baudelaire nem sequer se aproximou das zonas temíveis, e escreve esta frase a propósito do genial gravador Charles Meryon, verdadeiro louco que lhe mete medo.
O que pensa de si próprio o criador, e o que a sua criação lhe pede são duas coisas completamente separadas e diferentes. A todos os espíritos com interesse pela substância da arte e o seu limite se levantou o problema da relação entre o génio e a loucura. Viu-se levantado em alguns grandes exemplos, em alguns casos monumentais da história da arte. Levanta-se na presença de uma luta, num lugar qualquer da luta; luta entre o génio que concebe e o génio que destrói, ambos saídos do reduto das vulgares consciências. Em suma, luta entre dois termos igualmente desconhecidos porque ignoramos o que é o génio, embora não ignoremos menos o que é a loucura através das suas formas múltiplas. Sabemos, pelo menos, que dores desconhecidas, insondáveis, acompanharam algumas altas criações.
Um determinado bom senso, que nenhum dos dois termos compreende, tende a aproximá-los, a confundi-los ou a explicá-los à custa um do outro. Será porém necessário assinalar a grosseria do erro, a confusão entre todas as formas não racionais do pensamento. Na verdade, nada é mais contrário ao génio dominador do que a sempre mecanizada loucura. Veja-se, por outro lado, que há mais de um século se discute, em geral de forma teórica, sobre a misteriosa aliança que ao caso trouxe exemplos numerosos e ilustres, sobretudo depois do romantismo alemão. Nos nossos dias, um verdadeiro snobismo da loucura acabou por tomar conta de críticos e amadores; toda a gente quer ser louca; toda a gente quer ver de perto o esgar da loucura. E são expostos os desenhos dos manicómios como se fossem de mestres. Esta nova e mais estranha aberração que a curiosidade alimenta ― Artaud dizia isto: «A curiosidade é a mais obscena das coisas» ― corresponde ao aparecimento dos trabalhos de Freud nos finais do século passado, altura em que corajosos métodos analíticos libertaram, a partir do erótico, mais rigorosas estruturas do inconsciente. E desde os românticos, depois de Baudelaire sobretudo, uma poderosa corrente orientava, ao mesmo tempo e cada vez mais, a arte poética para as fontes subterrâneas, e formava-se a noção de um inconsciente poético como abertura da inspiração, motor das imagens.
Não muito interesse haverá que ter pelos casos da demência que destruiu radicalmente o espírito de um grande artista ― por exemplo o caso de Nietzsche. Pelo contrário, o interesse reside no cruzamento das forças, na luta que elas travam. O que desejo evocar nalguns retratos é o drama mental que acaba por se representar, como em todos os dramas do homem, entre Eros e morte mas no interior de uma consciência excepcionalmente desequilibrada na sua produção. E por isto escolhi a ordem dos termos ― loucura e génio ― para mostrar que a perturbação intervém, dolorosa, em todas as esferas, desde o ser humano à pessoa, desde a pessoa à sua obra. Finalmente importa, sobretudo importa, que seja preservada a luz da arte.
O que pensa de si próprio o criador, e o que a sua criação lhe pede são duas coisas completamente separadas e diferentes. A todos os espíritos com interesse pela substância da arte e o seu limite se levantou o problema da relação entre o génio e a loucura. Viu-se levantado em alguns grandes exemplos, em alguns casos monumentais da história da arte. Levanta-se na presença de uma luta, num lugar qualquer da luta; luta entre o génio que concebe e o génio que destrói, ambos saídos do reduto das vulgares consciências. Em suma, luta entre dois termos igualmente desconhecidos porque ignoramos o que é o génio, embora não ignoremos menos o que é a loucura através das suas formas múltiplas. Sabemos, pelo menos, que dores desconhecidas, insondáveis, acompanharam algumas altas criações.
Um determinado bom senso, que nenhum dos dois termos compreende, tende a aproximá-los, a confundi-los ou a explicá-los à custa um do outro. Será porém necessário assinalar a grosseria do erro, a confusão entre todas as formas não racionais do pensamento. Na verdade, nada é mais contrário ao génio dominador do que a sempre mecanizada loucura. Veja-se, por outro lado, que há mais de um século se discute, em geral de forma teórica, sobre a misteriosa aliança que ao caso trouxe exemplos numerosos e ilustres, sobretudo depois do romantismo alemão. Nos nossos dias, um verdadeiro snobismo da loucura acabou por tomar conta de críticos e amadores; toda a gente quer ser louca; toda a gente quer ver de perto o esgar da loucura. E são expostos os desenhos dos manicómios como se fossem de mestres. Esta nova e mais estranha aberração que a curiosidade alimenta ― Artaud dizia isto: «A curiosidade é a mais obscena das coisas» ― corresponde ao aparecimento dos trabalhos de Freud nos finais do século passado, altura em que corajosos métodos analíticos libertaram, a partir do erótico, mais rigorosas estruturas do inconsciente. E desde os românticos, depois de Baudelaire sobretudo, uma poderosa corrente orientava, ao mesmo tempo e cada vez mais, a arte poética para as fontes subterrâneas, e formava-se a noção de um inconsciente poético como abertura da inspiração, motor das imagens.
Não muito interesse haverá que ter pelos casos da demência que destruiu radicalmente o espírito de um grande artista ― por exemplo o caso de Nietzsche. Pelo contrário, o interesse reside no cruzamento das forças, na luta que elas travam. O que desejo evocar nalguns retratos é o drama mental que acaba por se representar, como em todos os dramas do homem, entre Eros e morte mas no interior de uma consciência excepcionalmente desequilibrada na sua produção. E por isto escolhi a ordem dos termos ― loucura e génio ― para mostrar que a perturbação intervém, dolorosa, em todas as esferas, desde o ser humano à pessoa, desde a pessoa à sua obra. Finalmente importa, sobretudo importa, que seja preservada a luz da arte.
- Pierre Jean Jouve
(tradução de António Moura)
in Loucura e Génio, Hiena
Sem comentários:
Enviar um comentário