sábado, março 10, 2012

TRABALHOS DO POETA

[1949]


VIII

Estendo-me na cama mas não consigo dormir. Os meus olhos rodam no centro de um quarto negro, onde tudo dorme esse sono final e desamparado em que dormem os objectos cujos donos morreram ou sem aviso desapareceram para sempre, sono obtuso de objecto entregue ao seu próprio peso inanimado, sem o calor de uma mão que o toque ou apanhe. Os meus olhos apalpam inutilmente o armário, a cadeira, a mesa, objectos que me devem a vida mas que se negam a reconhecer-me e partilhar comigo estas horas. Fico quieto no meio da grande esplanada egípcia. Pirâmides e cones de sombra fingem para mim uma imortalidade de múmia. Nunca poderei levantar-me. Nunca será outro dia. Estou morto. Estou vivo. Não estou aqui. Nunca me movi deste leito. Jamais poderei levantar-me. Sou uma praça onde visto capas ilusórias que me estendem toureiros enlutados. Don Tancredo ergue-se no centro, relâmpago de gesso. Ataco-o, mas quando estou prestes a derrubá-lo há sempre alguém que chega em sua defesa. Invisto de novo, um tom de troça nos meus lábios imensos ecoa nas redondezas. Ah, nunca consigo dar fim ao touro, nunca sou completamente arrastado por essas mulas tristes que andam às voltas na arena, sob a asa fria desse assobio que decapita a tarde como uma inexorável navalha. Incorporo-me: ainda é a uma. Estendo-me, os meus pés saem do meu quarto, a minha cabeça atravessa as paredes. Estendo-me pela imensidão como as raízes de uma árvore sagrada, como a música, como o mar. A noite enche-se de patas, dentes, garras, ventosas. Como defender este corpo demasiado grande? Que farão, a quilómetros de distância, os dedos dos meus pés, os das minhas mãos, as minhas orelhas? Encolho-me lentamente. A cama range, o meu esqueleto range, as dobradiças do mundo chiam. Muros, escavações, marchas forçadas sobre a imensidade de um espelho, velas nocturnas, enormes suspiros à beira de um poço cegado. Zumbe um enxame de engenhos. Copulam casais coxos. Tambores no meu ventre e um apagado rumor de cavalos que se escondem na areia do meu peito! Dobro-me. Entro em mim pela orelha esquerda. Os meus passos retumbam no abandono do meu crânio, iluminado apenas por uma constelação grená. Atravesso aos apalpões a enorme sala desmantelada. Portas tapadas, janelas cegas. Penosamente, de rastos, saio pela minha orelha direita para a luz enganosa das quatro e meia da manhã. Oiço os passos lentos da madrugada que se insinua entre as frestas, garota frágil e perversa que lança uma carta cheia de insídia e calúnias. As quatro e trinta, as quatro e trinta, as quatro e trinta. O dia põe-se-me em cima com a sua sentença: há que nos pormos a pé para enfrentar o trabalho diário, os cumprimentos matinais, os sorrisos torcidos, os amores em leito de agulhas, as dores e as distracções que deixam cicatrizes que não se apagam. E tudo sem ter repousado um só instante, pois agora que estou morto de sono e fecho os olhos pesadamente, o relógio chama-me: são as oito, já é hora.

- Octavio Paz
in Águila o sol?

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