o enamorado. O que nunca
quis ser.
______Era o que arrastava
os seus sapatos pela cidade,
sobre os passos do negócio
e a política de guerra.
Não adivinhava a hora de dormir
nem sabia como
abrir a cancela.
Eu era exactamente
o que nunca quisera alguma vez
ser: o enamorado.
Personagem para um conto próprio
em que aparece um relógio
que se adiantou; para uma história
difícil de escrever
e certamente de êxito.
Desconhecia
o começo e o desenlace:
apenas podia escrever o presente,
apenas o nu daquele retrato.
A saber: cabos eléctricos
e grinaldas de luzes frias
recordavam a infantilidade;
a infantilidade dos meus instintos.
Eu desejava o que nunca
se desejou como desejo:
desejo demais para mim,
para os demais, quase nada.
Para os outros, menos
que uma luz que se acende ou não.
E eu deslizava por mim
entre o cheiro da injustiça,
sendo aquele que amava menos
ser: o enamorado.
Eu conhecia o ninho oculto
que há debaixo dos candeeiros,
a pistola que aponta sobre nós
desde os maciços de flores.
Com uma experiência tão grande
- ganha eu não sei como -.
sobressaltam-me as letras
das revistas infantis.
Uns lábios desconhecidos
pegavam-se aos meus sapatos.
Dessa maneira, como andar?
Eu era, assim, irremediavelmente
o protagonista daquela história.
Com chuva era mais feliz
porque apagava o meu rasto
e eram de carne fresca as calçadas
e as minhas solas, quase meus lábios.
Encerrar o ar todo numa urna
- pode chamar-se-lhe Pandora -,
a luz toda numa cova
- ainda que tu e eu estejamos ali -,
a água toda num só mar,
estender todas as mãos
em redor de um só pacto
- agora me lembro que não tive
mais que duas mãos -, é o mesmo
que construir o mundo. E o amor
como pô-lo todo ele apenas
naqueles lábios ou línguas
que me molhavam os sapatos?
Cada rua e a minha própria rua
levavam-me até ao cimo
cujo pico era eu mesmo
impedindo-me de continuar.
Se me salvei, se me perdi,
perguntem-no ao enamorado.
- Ángel Crespo
in Antología poética (1949-1995), Visor
Sem comentários:
Enviar um comentário