domingo, janeiro 01, 2012

A garrafa

A garrafa guarda a bruma
da maior noite do mundo
mas o vulto de meu pai
está imóvel nas brumas
sem canção de desespero.
Da garrafa sai um rio
que banharia Paris
se todos nós nos erguêssemos
em torres de fá maior.
Meu pai imóvel nas brumas
nas brumas sem desespero
domina os arranha-céus
fecha a álgebra da noite
esvaziando a garrafa
de um líquido inexistente
onde dormem tentações:
uma estação, um piano,
uma flor de botoeira,
algumas bibliotecas
sem La Chartreuse de Parme
e o sono, doçura intacta.
Entornando essa garrafa
sobre a minha vida triste
fico eternamente bêbedo
canto nos cais, nos desertos,
aspiro hálitos do céu
e vou pela vida ao léu
quase lúcido de bêbedo!

- Lêdo Ivo
in Poesia Completa, Braskem

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