De entre as manifestações recitadas, e não foram poucas, que no ano passado surgiram destinadas a fazer conhecer poetas, ou novos poetas, só a uma me foi dado assistir: avisado a tempo por voz amiga de que ia dar-se não sei que provocação na sala – o salão da Sociedade Nacional de Belas Artes – não pude deixar de ir, para o caso se ser preciso observar. Para conforto e sossego de todos, tal não chegou a acontecer. Iniciada a sessão, cujo projecto de base era porem-se os poetas que vivem em Lisboa, e alguns de fora, a dizer os poemas próprios para regalo de pública assistência – projecto que logo falhou porque alguns resistiram, não foram, outros, como o autor destas linhas, foram mas não quiseram – iniciada a sessão, e depois de bem enxovalhado o poeta Almada Negreiros, que a abrira, esta caiu no normal e vulgar assassinato amador de poesia que é regra no nosso tempo, nos nossos salões, e entre o nosso público, por mais que uma ou duas consciências mais avisadas se misturem às organizações e tentem promover.
Na parte que mais de perto me tocou, a grande actriz Mariana Rey Monteiro, dignando-se ler um pequeno poema meu, enganou-se logo no primeiro verso, e a sua voz bem modulada e o sortilégio da sua figura levaram o público, a galope, para as montanhas da Hélada, a mim aquele erro soube-me a aviso sumário. Seguiu-se o grande actor Paulo Renato que também leu um poema. Estava despachado. E diga-se: sem especial motivo de queixume, pois, embora a minha recusa (desagradável), os meus pequenos poemas haviam sido confiados a artistas probos, do melhor que o nosso teatro tem e que sem dúvida deram o melhor que o seu tempo e a sua arte permitem. Mas eis que entram os revolucionários! Contra a minha expectativa, que os esperava na sala, no meio do público aturdido, eles estavam no estrado dos recitadores, eram eles os recitadores! Ouvi um poema de Alexandre O'Neill dito por Fernando Ribeiro de Mello, que era uma carnagem sem freio, a dente e a cutelo, à obra lida. E o «recitador», agradecendo as vaias e os aplausos, batia com a mão no papel lido, exclamando: É assim mesmo! Toma lá cinco! Tintos, respondiam da sala! Seguiram-se outros poetas, também por leitura: irreconhecíveis! Às duas da manhã ainda havia gente a ver passar os enterros. A alegria era geral. Salvavam-se do massacre Natália Correia, António Gedeão, que disseram muito bem os seus poemas, David Mourão-Ferreira, bastante ovacionado, Armindo Rodrigues, apesar da voz sumida. Os outros, eram um chão de Alcácer-Kibir.
Esclareço que não é minha intenção atacar este recital, ou pseudo-recital, de poesia, ou este em especial. De há alguns anos para cá, com a chegada de uma gente nova – que responde, aliás, ao rabo-leva de «novíssima» que está a dar na poesia última em data – que estes recitais (poesia lida) se sucedem com o agrado evidente de quem lê não lhes custa trabalho nenhum, é abrir o livro emprestado e zás, dar à língua e altear a dextra mantendo firme a canhota, e a admiração de quem escuta, que também não dá trabalho; é conservar a cadeira e voltar para casa incólume. Era minha intenção, sim, mas não sei se o faça já, se o faça já aqui, pedir às pessoas idóneas, mas, mais lato e mais forte, se possível, à em princípio bela, magnífica juventude por conta da qual corre, na sua maior parte, a organização destas leituras, que se deixem disso, porque estão a ser enganados: por si próprios, pelo público e pela crítica.
- Mário Cesariny
in as mãos na água a cabeça no mar, Assírio & Alvim
quarta-feira, dezembro 28, 2011
Saldos do Ano Acabado
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