Em As Súbitas Permanências, segundo livro de poemas editado por José Manuel Teixeira da Silva, o poeta viaja por espaços mais ou menos definidos, em que as cidades são captadas pela sua visão, os monumentos também, as imagens sempre. Permitam-nos citar a voz autorizada do poeta no poema “Ilha de Malta, o Tempo” incluído nessa publicação: “A frivolidade imensa das viagens/disso se faz o trânsito e a vida”.E é a vidas em trânsito que o poeta de Anima vai beber os motivos poéticos que hoje nos chamaram a este lugar, de novo enveredando por uma viagem, como se de um migrante se tratasse. Só que, desta vez, o poeta viaja dentro de um espaço-casa que se faz mundo a cada palavra escrita, a cada imagem desvelada. A escrita precipita-se sobre o papel, tal qual a “cesura das coisas” e a “dor” reveladas se aceleram, numa voragem de tempos dolorosos, vividos em “cozinhas negras”, espaços onde aconteciam vidas, as das “batatas”, as das “borboletas” , as das “raparigas”. É certo que, como sugere o primeiro poema, “batatas” e “vida” são vidas que não rimam, ainda que a brancura, que as "raparigas" dolorosamente procuravam, as forçasse a viver, a sobreviver na própria “batata”. Trata-se aqui de uma simbologia do castigo, de uma austera disciplina, como mostra a ilustradora Ana Luísa Abreu, no belíssimo texto que inaugura esta viagem poética: “ As meninas em internamento, com uma disciplina severa, num espaço-tempo estruturado, segmentado, vigiado, transformavam-se, à luz dos valores morais vigentes na instituição, em pessoas humildes, virtuosas e geradoras de proventos”. A palavra “transformação” acompanhará também todo o processo de construção desta escrita comprometida com a luz, ainda que, muitas vezes, circulando na profundidade da sombra. Assim, a batata floresce, esparzindo os seus “olhos” pelo universo, numa permanente busca das notas certas para uma sinfonia de renovação, de purificação. Considerava o disciplinador sistema que um tão prosaico elemento seria o veículo para a renovação moral, espiritual de cada corpo que tocava cada “batata”, num movimento criador de espaços e de tempos.
Neste primeiro poema, “Há nas vidas a vida das batatas”, parece brotar a dor em cada poro de cada criatura que nelas toca, num ritual inevitável de caminho em direcção à luz, a luz daqueles que desenhavam o sistema.
Não sabemos se por acaso, se intencionalmente, a imagem que abre esta obra é a de uma borboleta, geograficamente renascida e a renascer, num processo metamórfico que, a qualquer instante, poderá ser interrompido. Há cortes que irrompem e suspendem essa metamorfose que poderá ter a duração de uma vida, a vida de cada uma das raparigas que povoaram o Corpus Christi, na “surda floração de cada tempo”. Tratar-se-á, talvez, de um tempo cristalizado em cada exemplar de “borboleta”, de “batata”, de “rapariga”. E, já no segundo poema, cruzamo-nos com a segregação profunda e estruturalmente enraizada nos alicerces da casa, desta casa. Fundações criadas com a “nossa pele” ou será antes a pele das “batatas”? Num rito de sangue, suor e lágrimas, a luz permanece encarcerada nos “ferros” que dividem a clausura do espaço e do tempo, tempo vivido com a lentidão própria de quem procura avidamente a luz, mas que, inevitavelmente, padece na sombra. O “silêncio tão pisado / ou os gritos de tachos e talheres” referidos, numa composição ondulante, com os “fulgores” das “meninas”, geram um frenético encontro de corpos, que se tocam, encontrando o seu lugar, um lugar nas trevas, ainda que, sempre, com um vislumbre de sol na retina.
No terceiro poema, o poeta animiza a “batata”, mostrando a sua vertente autofágica, num avanço de liberdade apenas sonhada, de libertação quase ansiada. Os seus braços, que domesticaram as “presas”, abrem-se, como que dizendo às “meninas que bordam”: - Vão, parti, ide em direcção à Luz… e elas, as “meninas”, com a sua referencialidade restringida, limitada pelas grades da clausura, conquistam a vida bem viva nas ditas “naturezas mortas” que vão criando.
E avançando nos poemas, conhecemos agora o castigo supremo, pois “descascam-se batatas toda a noite”, numa tortura de “frieiras” que condenam as almas, através do suplício dos corpos. Cada gota de sangue que possa jorrar da “imprecisão dos golpes” será o renascimento, a fenda do tempo por onde perpassará o “dia”, a “janela”, as “cascas nacaradas”, o “rio”, o “ouro”. E é assim que, vinda do mais profundo das trevas, renasce a esperança de um dia menos gradeado, menos descascado, que conferirá um lampejo de vida nova a quem tanta casca desbravou!
Continuando num ritmo de tempo avassalador, o poeta encontra na linguagem pictórica, explicitamente, o desenho das “hastes do tempo” que, afinal, se foram desenhando nas “batatas”, colocando em suspenso o próprio tempo, em “tempos que elaboram tempos”. As “meninas perdidas” poderão ser a metáfora da ascensão e da queda de cada um de nós que, no labirinto da arquitectura existencial e numa verticalidade ontológica, nos movemos na perda, no encontro, no reencontro, na conquista, na vitória, na derrota, na vida.
E os “poços”, que acolhem a escuridão, a sombra, as trevas, “encostam as meninas às paredes”, numa assunção de humanidade e com “tantos olhos atentos”, não sabemos se das “meninas”, se das “batatas”, num testemunho de intensidade dos “corações” muito ou pouco “trespassados”. Parecendo esboçar por palavras o desenho das “meninas”, do coração das meninas, o poeta dialoga, uma vez mais e sempre, com as imagens de Ana Luísa Abreu e os seus traços diáfanos e profundamente intensos. As palavras do poeta emergem da densa tessitura, delineada finamente, até ao mais ínfimo pormenor, pela pintora. A imagem de uma, e permitam a ousadia linguística, batata-coração ilumina toda a página dezassete, lançando esgares às palavras ditas até ali, aos “corações trespassados” como se de um encontro inter-artes se tratasse. E é nesta movimentação dialógica, entre o artista da palavra- imagem e a artista da imagem que se faz palavra, que a possibilidade da construção de sentidos humano-arquitectónicos cresce, numa conversa de “olhos”, de “batatas”, de “metamorfoses”, de “meninas”.
Um grande poeta da nossa contemporaneidade, Herberto Helder, num pequeno conto-poema de Passos em Volta dá conta da densidade metamórfica de um pintor diante do seu referente (…). O olhar observador do artista de imediato se apercebe das nuances que estavam a acontecer e, assim, o “vermelho”, cor do peixe real, passa a “amarelo”, após uma pequena viagem pelo “preto”. A relação do artista com o real foi metamorfoseada pela “imaginação”, permitindo-se voar pela verdadeira representação, aquela que a varinha de condão mágica metamorfoseia explicitamente. Esta visão do mundo será, certamente, a do pintor, a do poeta, a de quem ouse observar o mundo com os seus próprios olhos. Em Anima, o poeta ousou olhar o mundo do antigo Corpus Christi com um olhar singular, juntando-se ao olhar pictórico da Ana Luísa Abreu.
Voltando aos poemas, em “Íntimos nós da sombra, os corações” deparamo-nos com as fundações de um edifício que se fez vida, a partir das “pedras parideiras/de corpos”, de “corações” que respiram ao ritmo da casa, deixando-se inundar pela “luz” que surge viva, muito viva, “em carne viva”. A casa respira intensamente a vida de cada uma das suas habitantes…
Dando voz à metamorfose, eis que nasce a “borboleta”, “para que se ilumine “a reserva/ da batata” , trazendo consigo a esperança da renovação, da transformação, evoluindo nas suas asas. Malgrado a dor de uma “casa” que grita, invade-nos a “luz”, a certeza de uma saída, a libertação, a distensão de corpos até então contidos. É o partir das coisas, o quebrar das amarras, vislumbre anunciado da “Luz”. Em osmose quase perfeita, “nascem borboletas de asas tão pesadas”, numa emanação de transparência vinda de “despensas do mais antigo negrume”. É que aquelas “borboletas”, antes da metamorfose absoluta, viveram um doloroso processo:
"Borboletas provêm de batatas/ de ranho, baba, extensões difíceis / como as bruxas que surdem das portadas/ trazendo o lume de buracos negros/ e asas trabalhadas pela ferrugem/ se se estendem os dedos de lixívia/ brilhando as chuvas de uma luz arruinada".
O negro pré-metamórfico vai-se desvanecendo, até se deixar eivar pela luz, ainda que essa claridade possa ser fruto dos “dedos de lixívia” que poliram ferozmente o negrume das coisas, o negrume da vida. Numa quase esperança de luz derradeira, absoluta, confrontamo-nos com o desânimo da ruína, “a luz arruinada”. Mas logo pressentimos a permanência dessa mesma Luz, iluminada pelo verbo brilhar, que rege o verso em questão.Num contínuo poético, as “borboletas” continuam a esvoaçar nos poemas e “trazem nas asas fios de humidade”. A liberdade das “borboletas” coabita com a contenção física e moral das habitantes dos “quartos”, vigiadas até pela paisagem envolvente. O percurso purificador avança, a alquimia acontece a cada instante. Num jogo disjuntivo de “luz” e de “sombra”, de “abismo” e de “céu” aproxima-se a metamorfose final. Agora, todos os elementos se conjugam e vemos com nitidez de alma "as batatas ao tempo", as “borboletas douradas”. As “meninas”, essas, continuarão a reinar “em seus tronos de pedra, chapa, lousa”, matérias pouco preciosas para “meninas” tão preciosas! No final, talvez o ouro do rio que se espelha na casa tenha sido o pintor das borboletas. A dúvida permanece, uma certeza porém: o pintor de palavras José Manuel Teixeira da Silva metamorfoseou-se, numa sintonia perfeita, com a poeta de imagens, Ana Luísa Abreu. Os traços de um e de outro fundaram um novo Corpus Christi, criaram novas “meninas”, novas “batatas”, novas “borboletas”, nova “Anima”…
- Rosa Mesquita
apresentação no Coro-Alto do Convento Corpus Christi, em 12/11/2011
quinta-feira, dezembro 29, 2011
ANIMA, de José Manuel Teixeira da Silva
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