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Algumas vezes acontece o título de um livro ser o mais cruel depoimento sobre as suas fraquezas. Com “Adornos” (D. Quixote, 2011), o sexto livro de Ana Marques Gastão, é exactamente isto que sucede. Chega a ser paradoxal o quanto uma poesia que parece procurar a depuração e a limpidez tão radicalmente delas se consegue afastar ao pejar os seus versos de meros adereços imagéticos ou sonoros: “Tentando não regressar/ a um alagadiço antes,/ suspendo-os em sílex,/ logo encontrando/ um silfídico futuro/ que provisoriamente/ dispo do presente.” (p. 22) ou “No côncavo dos olhos/ há meninas de fornalha/ achas a martelo abafadas,/ que protegem, ocultas,/ a função obstetrícia.” (p. 20).
Trata-se de uma poesia sensorial, “Queria ver por dentro das artérias/ o sabor de teu sumptuoso rosto/ que não vejo; ouvir a brancura/ aguda d’uns olhos sanguíneos/ que me não vêem” (p. 77). O termo talvez possa parecer demasiado genérico e, verdadeiramente, que poesia pode não o ser? Aqui tem, contudo, um significado simples de isolar.
Os sentidos são a forma como experienciamos o real, esse conceito polémico e, por vezes, tão mal compreendido no que o século XXI da poesia portuguesa nos tem mostrado. E dos sentidos, ou melhor, das sensações partem estes poemas de Ana Marques Gastão, num livro dividido em cinco partes, correspondendo cada uma, maioritariamente, a um dos cinco sentidos, apesar de não poucas vezes, em qualquer uma dessas partes, serem simultaneamente convocados: “se o alimento é d’um secreto/ nome – água matizada em quieto/ lago ou ofuscada obstinação –, seja/ o coração uma boca, os ouvidos/ uns lábios, o nariz uma coroa de sal.” (p. 69). Este apelo sincrónico dos sentidos é, aliás, um dos recursos mais frequentes neste livro, seja porque a autora pretende, através dos seus versos, um deslocamento da experiência sensitiva ou, então, uma metamorfose do “saturado real”. Veja-se isto, por exemplo, nestes versos do poema que dá o título ao livro: “Valho-me de um ouvido/ que quase não ouve/ porque vê/ em retorcido olhar/ do touro as asas.” (p. 39). Compreende-se a intenção, valiosa até, mas deve lamentar-se um imenso erro. Tão pouco desejável é num poema o seu esgotamento na realidade, como o é a falta de capacidade para oferecer ao leitor uma visão sobre esta, seja ela entusiasmante ou acutilante, cínica ou vibrante. O que os sentidos da autora destes poemas captam, na maioria dos seus versos, raramente se furta à regra de ser um mero adorno, uma criatividade enclausurada na incomunicabilidade ou, nos piores casos, na banalidade: “E assim do corpo resta um ocre tudo-nada” (p. 73), “Miopia a querer/ ver mais,/ recuada hipermetropia/ de ser filha/ de esperma e óvulo/ altivos em sua altitude” (p. 15) ou “São globos, os olhos/ ou esferas,/ bolbos e espera.” (p. 11). Quando isto não acontece, o leitor pode deparar-se com algumas imagens interessantes – “Enquanto a vida age,/ corro, às avessas, por dentro/ dos olhos.” (p. 12) –, mas estas são raras e, na maioria dos casos, perdem-se na litania pastosa que imprimiu em grande parte dos poemas, “Quando perco a palavra,/ o cheiro é de brejo/ e só oiço o relógio/ de odores sonoros/ e formato petalino./ Finjo, se finjo, finjo,/ que não exijo o relâmpago” (p. 19). Outras vezes, quando pensadas fora do ritmo do poema, as próprias imagens sugeridas pela autora, são até pouco abonatórias: “De águas frias, limo,/ odor de cérebro/ e língua modelaste,/ sem ceptro o torso./ Teu septo é um rio” (p. 63).
O mecanismo destes poemas, centrado na sucessão de imagens, até mesmo quando a visão não é propriamente o sentido de eleição, não deve ser interpretado como um recurso convenientemente explorado pela autora para dar ao leitor um testemunho sobre algo que, à penúria de melhor expressão, chamaremos a natureza humana. Corresponde, antes e bem pior, a toda a simplicidade de um abandono, patente numa fuga generalizada que este livro opera: fuga a ter uma ideia sequer que se pretenda ver cimentada no leitor ou aproveitada por este, fuga a dar um depoimento comunicável sobre a visão que a autora constrói do mundo e da sua relação com ele, fuga a canalizar tudo isso num esforço de construção musical do poema, enfim, fuga a ser poesia. Não são raros os versos que espelham isto mesmo: “Deslizam por escadas/ radiais, percorrendo,/ álgidos, sigilados túneis,/ canais – linhas cingidas,/ curvas sigmóides,/ necessárias trevas/ de uma força absoluta.” (p. 14); “a vida é um sopro/ invertebrado,/ tafetá ou monstro.” (p. 28).
O que se acabou de dizer poderia ser repensado com alguma benevolência, caso a ausência de conteúdo fosse compensada por um trabalho formal dos poemas próximo da exactidão. Isso só acontece aparentemente, porque na verdade a estrutura formal dos poemas e o seu ritmo perecem vítimas da mesma erosão que torna o seu significado ou críptico ou despedaçado. O recurso constante às aliterações e à rima quebrada não beneficiam o ritmo do poema, antes o prejudicam, quer por empurrarem a leitura precipitadamente para o fim da página, quer por fazerem esta tropeçar na sucessão dos versos, acabando por levar a que estrofes de apemas quatro ou cinco versos cansem como se nunca mais fossem acabar: “Estremeço, estrangeira./ Estranhas, rodo as maçãs/ entranhadas no rosto” (p. 35) ou “Escuto, escrever é escutar,/ ver, calar, deslizar,/ a ritmo de hamadríades/ que nascem e morrem/ dentro d’uma árvore oca.” (p. 40).
Chega a ser difícil compreender, voltando àquilo que se disse no início deste texto, que poemas com uma estruturação formal tão premeditada e pretendida, tendo em vista uma depuração extrema, acabem por ter dois resultados no extremo oposto do ambicionado: uma construção confusa, ou gasta, do ritmo e uma ornamentação plástica dos poemas. Neste aspecto, as poucas afirmações categóricas que se revelam neste livro – “Só de um cavo,/ páreo combate, / de uma insustentável/ doce pureza,/ nasce a música.” (p. 44) – aparecem desprotegidas e isoladas no trabalho de “Adornos”, tanto a nível prosódico, como a nível da construção significativa do poema. Não deixa de ser curioso que a própria autora diga nestes poemas que “a escrita é uma valsa” (p. 32), repetindo ao longo dos seus poemas a mesma pequena série de passos. “Adornos” é um livro de poesia extemporâneo, não porque nos revela um credo que chegou a este tempo como se viesse doutro século mas, pura e simplesmente, porque não vem de século algum.
Ana Marques Gastão, Adornos, D. Quixote, 2011.
Nota: uma estrela
Trata-se de uma poesia sensorial, “Queria ver por dentro das artérias/ o sabor de teu sumptuoso rosto/ que não vejo; ouvir a brancura/ aguda d’uns olhos sanguíneos/ que me não vêem” (p. 77). O termo talvez possa parecer demasiado genérico e, verdadeiramente, que poesia pode não o ser? Aqui tem, contudo, um significado simples de isolar.
Os sentidos são a forma como experienciamos o real, esse conceito polémico e, por vezes, tão mal compreendido no que o século XXI da poesia portuguesa nos tem mostrado. E dos sentidos, ou melhor, das sensações partem estes poemas de Ana Marques Gastão, num livro dividido em cinco partes, correspondendo cada uma, maioritariamente, a um dos cinco sentidos, apesar de não poucas vezes, em qualquer uma dessas partes, serem simultaneamente convocados: “se o alimento é d’um secreto/ nome – água matizada em quieto/ lago ou ofuscada obstinação –, seja/ o coração uma boca, os ouvidos/ uns lábios, o nariz uma coroa de sal.” (p. 69). Este apelo sincrónico dos sentidos é, aliás, um dos recursos mais frequentes neste livro, seja porque a autora pretende, através dos seus versos, um deslocamento da experiência sensitiva ou, então, uma metamorfose do “saturado real”. Veja-se isto, por exemplo, nestes versos do poema que dá o título ao livro: “Valho-me de um ouvido/ que quase não ouve/ porque vê/ em retorcido olhar/ do touro as asas.” (p. 39). Compreende-se a intenção, valiosa até, mas deve lamentar-se um imenso erro. Tão pouco desejável é num poema o seu esgotamento na realidade, como o é a falta de capacidade para oferecer ao leitor uma visão sobre esta, seja ela entusiasmante ou acutilante, cínica ou vibrante. O que os sentidos da autora destes poemas captam, na maioria dos seus versos, raramente se furta à regra de ser um mero adorno, uma criatividade enclausurada na incomunicabilidade ou, nos piores casos, na banalidade: “E assim do corpo resta um ocre tudo-nada” (p. 73), “Miopia a querer/ ver mais,/ recuada hipermetropia/ de ser filha/ de esperma e óvulo/ altivos em sua altitude” (p. 15) ou “São globos, os olhos/ ou esferas,/ bolbos e espera.” (p. 11). Quando isto não acontece, o leitor pode deparar-se com algumas imagens interessantes – “Enquanto a vida age,/ corro, às avessas, por dentro/ dos olhos.” (p. 12) –, mas estas são raras e, na maioria dos casos, perdem-se na litania pastosa que imprimiu em grande parte dos poemas, “Quando perco a palavra,/ o cheiro é de brejo/ e só oiço o relógio/ de odores sonoros/ e formato petalino./ Finjo, se finjo, finjo,/ que não exijo o relâmpago” (p. 19). Outras vezes, quando pensadas fora do ritmo do poema, as próprias imagens sugeridas pela autora, são até pouco abonatórias: “De águas frias, limo,/ odor de cérebro/ e língua modelaste,/ sem ceptro o torso./ Teu septo é um rio” (p. 63).
O mecanismo destes poemas, centrado na sucessão de imagens, até mesmo quando a visão não é propriamente o sentido de eleição, não deve ser interpretado como um recurso convenientemente explorado pela autora para dar ao leitor um testemunho sobre algo que, à penúria de melhor expressão, chamaremos a natureza humana. Corresponde, antes e bem pior, a toda a simplicidade de um abandono, patente numa fuga generalizada que este livro opera: fuga a ter uma ideia sequer que se pretenda ver cimentada no leitor ou aproveitada por este, fuga a dar um depoimento comunicável sobre a visão que a autora constrói do mundo e da sua relação com ele, fuga a canalizar tudo isso num esforço de construção musical do poema, enfim, fuga a ser poesia. Não são raros os versos que espelham isto mesmo: “Deslizam por escadas/ radiais, percorrendo,/ álgidos, sigilados túneis,/ canais – linhas cingidas,/ curvas sigmóides,/ necessárias trevas/ de uma força absoluta.” (p. 14); “a vida é um sopro/ invertebrado,/ tafetá ou monstro.” (p. 28).
O que se acabou de dizer poderia ser repensado com alguma benevolência, caso a ausência de conteúdo fosse compensada por um trabalho formal dos poemas próximo da exactidão. Isso só acontece aparentemente, porque na verdade a estrutura formal dos poemas e o seu ritmo perecem vítimas da mesma erosão que torna o seu significado ou críptico ou despedaçado. O recurso constante às aliterações e à rima quebrada não beneficiam o ritmo do poema, antes o prejudicam, quer por empurrarem a leitura precipitadamente para o fim da página, quer por fazerem esta tropeçar na sucessão dos versos, acabando por levar a que estrofes de apemas quatro ou cinco versos cansem como se nunca mais fossem acabar: “Estremeço, estrangeira./ Estranhas, rodo as maçãs/ entranhadas no rosto” (p. 35) ou “Escuto, escrever é escutar,/ ver, calar, deslizar,/ a ritmo de hamadríades/ que nascem e morrem/ dentro d’uma árvore oca.” (p. 40).
Chega a ser difícil compreender, voltando àquilo que se disse no início deste texto, que poemas com uma estruturação formal tão premeditada e pretendida, tendo em vista uma depuração extrema, acabem por ter dois resultados no extremo oposto do ambicionado: uma construção confusa, ou gasta, do ritmo e uma ornamentação plástica dos poemas. Neste aspecto, as poucas afirmações categóricas que se revelam neste livro – “Só de um cavo,/ páreo combate, / de uma insustentável/ doce pureza,/ nasce a música.” (p. 44) – aparecem desprotegidas e isoladas no trabalho de “Adornos”, tanto a nível prosódico, como a nível da construção significativa do poema. Não deixa de ser curioso que a própria autora diga nestes poemas que “a escrita é uma valsa” (p. 32), repetindo ao longo dos seus poemas a mesma pequena série de passos. “Adornos” é um livro de poesia extemporâneo, não porque nos revela um credo que chegou a este tempo como se viesse doutro século mas, pura e simplesmente, porque não vem de século algum.
Ana Marques Gastão, Adornos, D. Quixote, 2011.
Nota: uma estrela
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