terça-feira, novembro 01, 2011

A poesia de um homem

A ironia como atitude perante a vida
é antiquado, disseste.
Que seja, meu amigo.
Deixa-me ser antiquada e sobreviver,
Deixa-me a aresta cortante das palavras
para limpar um mundo
para o meu ego.

A raiva já quase passou.
A minha alma é quase minha.

Há até hipóteses
de que o meu pai
também não desejasse morrer.

A minha mãe vigiava à sua cabeceira
e nunca se perdoou
por ter adormecido
na noite em que ele morreu.
Ele deixou uma mesa, uma cadeira,
uma máquina de escrever e um bloco de notas.
Nas reuniões de família
a minha mãe sorria
no seu melhor chiffon desbotado
e viajava em terceira
enquanto a família dele viajava em primeira
no mesmo comboio.

Fui crescendo
e só desejava
rir espontaneamente.
Tudo o que emergia
era um relincho nervoso.

Os meus membros começaram a soltar-se
a minha cara a dissolver-se,
o meu amor abraçava-me com força
durante horas quando eu não podia
nem falar nem chorar,
trazia comida e alimentava-me.

Com ele estou a aprender a amar.

- Eunice de Souza
(tradução de Ana Luísa Amaral)
in Poemas Escolhidos, Cotovia

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