domingo, outubro 16, 2011

Segunda Natureza

Pray for a life without plot,
a day without narrative

Derek Walcott

Um sol retraído e a chuva golpeando
as coisas que na claridade deixámos
de ver. Sons que não se ligam, cores
desmemoriadas no embalo de um
sussurro entre todas as bocas à tona
desta terra molhada. Prodígios
de luz encobrindo rastos, o esqueleto
dos bichos formando pequenas jaulas
de sombra, ninhadas de animais invisíveis,
enxames de abelhas ansiosas,
os lábios partidos dos canteiros, as flores
iniciais e aquelas cicatrizando os muros.
Uma lagartixa num, horas, fixada
sobre o hieróglifo da sua sombra.
Que equilíbrio fascinante. Difícil saber
o que sustém o quê, mas nada é trivial.

A árvore estende a todo este largo
uma estranha dignidade. Confiante, só,
bebendo no tempero da aurora o seu
grito mudo. Dias que não deixam
de ser breves, sua frágil exaltação de
pequenos incidentes, irreflectidos,
quase despropositados.
Uma brisa desata a memória dos frutos
nos ramos onde engordam pássaros de cinza.
Quedas musicais, um nervoso bailado.
Cantam em louvor dos idosos, ali dobrados
sobre o leme dessas naus de pedra,
entranhando-se-lhes na roupa e na pele
o cheiro marítimo, a distância. Falsas
todas as partidas, todas as tardes,
sedentárias odisseias entre parêntesis
de náusea e desafecto, pensamentos
tenebrosos dentro e fora de sombras.
Tudo o que lhes resta – um resignado
afastamento do mundo.

Os olhos doem-me terrivelmente,
retirados ao sonho, pálpebras descosidas
nas manhãs insípidas. A casa já desperta,
atenta à prece das cortinas. Voz fraca
de uma luz mortiça que entra reordenando
o seu cortejo de tímidas figuras de dança
entregues à melodia pressentida
na intimidade de certos objectos.

Ela ergueu-se, fez o café,
pôs ordem às linhas do corpo e desapareceu.
Os bilhetes, os simples recados cheios
da doce inabilidade e dos infindáveis
rodeios que o desejo e o amor usam
para se fazerem entender, acabou.
Debaixo da cama, uma caixa cada vez
mais triste: a minha ridícula colecção
de amuletos para uma sorte
que não voltará a apanhar-nos juntos.

Nessas primeiras horas sou mera
imagem desfocada, vagueando nua,
cigarro ao peito, vulnerável,
entregue a explicações. O absurdo
simples. Sono e confusão, esta frase
gaga que fica repetindo o mundo,
baixinho, numa prosa como tinta
derramada. A loucura do cansaço.
Estas mãos escuras, tremem demais
e coçam-se devorando a espera.
Um pouco de céu que retenho sempre
por baixo das unhas e um eco ganhando
distância das coisas que li. E começo.

Meu nome na violência do traço,
um ritmo impressionado pelas suas
representações excessivas. A pose imortal
desta cidade que mal me olha, e tem
no seu rosto antigo de menina
uma lágrima parada. Foi outro
quem a fez chorar. E então eu prefiro
estas colagens, vadiagens inglórias, cafés
e a batida nocturna do desejo. Corpos
ácidos de mulheres, manchas
arrastando a pele, sem norte nem oriente.
No fim, é muito mais o que canto
que o que entendo. E a sombra da mão
que escreve atravessa em delírio
sucessivas metamorfoses, e deixa ovos
nas feridas de uma era que desistiu
de se explicar.

Sem comentários: