sexta-feira, outubro 14, 2011

A chuva

Quando o meu irmão mais velho
voltou da guerra
trazia na testa uma pequena estrela de prata
e por baixo da estrela
um abismo

o estilhaço de um projéctil
atingiu-o em Verdun
ou talvez em Grünwald
(esquecera os detalhes)

Costumava falar pelos cotovelos
em várias línguas
mas mais do que todas gostava
da linguagem da história

antes de perder o fôlego
comandara os seus companheiros mortos
na perseguição a Roland Kowalski Hannibal

gritou
que seria esta a última cruzada
que Cártago em breve cairia
e depois confessou em soluços
que Napoleão não o apreciava

olhávamos para ele
cada vez mais pálido
abandonado pelos sentidos
a pouco e pouco tornando-se um monumento

por musicais conchas de ouvido
entrando num bosque de pedra
a pele do seu rosto
presa
pelos cegos e secos
botões daqueles olhos

nada restava dele
a não ser o toque

que estórias
contou com aquelas mãos
na direita tinha romances
na esquerda as memórias de soldados

levaram o meu irmão
levaram-no da cidade
e a cada inverno ele retorna
magro e muito calado
não quer entrar
bate à janela chamando-me

caminhamos juntos pelas ruas
e ele recita para mim
contos improváveis
que me tocam no rosto
com cegos dedos de chuva

- Zbigniew Herbert

1 comentário:

P. P. disse...

Tocante.
Sobretudo para quem, assim como eu, teve o pai numa guerra.
A referência à medalha é notória. Não serão quase todas elas semelhantes, à excepção dos que se encontram protegidos dos campos de combate?

Abraço