terça-feira, outubro 25, 2011

As boas consciências

És assim: inteligente, clara, refinada,
vives em harmonia com as gentes, as coisas e as plantas
que escolheste devagar,
rejeitando sem ruído aquilo que quebrava o ritmo diurno,
a calma das tuas noites.
Isso não significa que ignores este caos,
este fragor de sangue a que chamam século vinte.
Pelo contrário, segues muito de perto
coisas como o racismo, o apartheid e as multinacionais,
o sangue na Argentina e no Chile e no Paraguai e etc.
Todas as tardes às seis compras Le Monde
e indignas-te sinceramente
porque tudo é violência, violação e mentira
em Dublin em Beirute em Santiago em Banguecoque.
E depois quando vêm Paulita e Juan e Pepe
explicas-lhes com chá e torradas que isto não pode ser,
que como é possível que isto seja assim e a mesa
enche-se de protestos democráticos,
de migas humanísticas e Direitos Humanos (cf. Unesco).
Todos estão de acordo e todos sentem
que estão do lado justo, que há que esmagar Pinochet,
mas curiosamente
nem eles nem tu fizeram nunca nada
para ajudar (digamos, deram dinheiro, solidarizaram-se
alguns com campanhas jornalísticas),
porque lhes leva o melhor do tempo
esmagar o fascismo com perfeitas razões silogísticas
e sentimentos impecáveis.
É evidente que ler Le Monde
já é um combate perante aqueles que lêem Le Figaro.
O importante é saber onde está a verdade
e repeti-lo e repeti-lo todos os dias
aos mesmos amigos no mesmo café.
Quase uma militância ou pouco menos,
quase um perigo porque numa dessas
um fascista ouve-te e faz-te logo a ficha.
Oh, querida, já é tarde,
vem dormir mas antes, claro,
as últimas notícias. Mataram
Orlando Letelier. Que horror, não é,
isto não pode ser, esta violência
tem de acabar.
(Toca o telefone, é Paulita
que acaba de saber.)
Dá gosto ver
como tu e a tua gente participam
na história.
Vais dormir tão mal, não é, é melhor ficar a ouvir música
até que venha o sono dos justos.

- Julio Cortázar
in Papéis Inesperados
retirado daqui

Sem comentários: