à memória de Gregório de Freitas, meu tio
Vejo-o sempre de chapéu, foice
sobre o ombro, adivinhadas ceroulas.
Foi um dos meus primeiros medos,
e não tanto pela incúria com que
o velho Opel descia do Estreito
a São Martinho, arrogando
como prioridade a aguardente,
depois das infalíveis espetadas.
Dizia que os livros só faziam mal
e talvez tivesse razão, nessa casa
onde nem uma Bíblia havia.
Era feroz e bruto como a terra
ou os escuros animais que encarcerava
entre as vinhas e bananeiras.
Dizia também o preço de todos os fatos
que vestia, com a alegria sumptuária
de quem nasceu pobre e não ignora
que na morte ficará mais pobre ainda.
A morte, para ele, era deixar de comer
carne, não ter já o corpo pesado
que pudesse trazer à rua os fatos.
Obrigava-me, na penumbra da tarde,
a cortar-lhe as unhas sujas de guano
que atestavam décadas de fazenda
e regavam a desoras, por contrato.
Nunca lhe perdoei tanta coisa;
ia ficando cada vez mais longe do riso
e do rancor da bisca, do terço com que
na rádio aplacava as superstições e o tédio.
Preferia, contudo, que não tivesse morrido.
- Manuel de Freitas
in A última porta, Assírio & Alvim
Sem comentários:
Enviar um comentário