O pouco debate que têm suscitado as considerações de António Guerreiro sobre o “protocolo” entre a Assírio & Alvim e a Porto Editora é preocupante. Parte da posição que o crítico do Expresso adopta, especialmente quando refere que “o «protocolo de colaboração» celebrado no final da semana passada entre a Assírio & Alvim e a Porto Editora pode ser uma benéfica operação”, não deixa de me recordar Benito Cereno, o aristocrata e capitão de um navio mercante da história homónima de Herman Melville, que depois de um motim dos escravos que transportava a bordo do navio se vê obrigado por estes a pilotar o barco em direcção a África, totalmente contra a sua vontade.
Essa parte do texto de Guerreiro segue um princípio: este protocolo corresponde, no fundo, a uma aquisição do catálogo da Assírio & Alvim por parte da Porto Editora, a qual continuará a editá-lo, distribui-lo e, idealmente, expandi-lo na sua progressão lógica. Este princípio, contudo, peca pelo optimismo infundado em que se sustenta.
Esquece, em primeiro lugar, que este protocolo não é o equivalente a um tratado de amizade e cooperação entre dois grandes Estados. É, antes, um tratado de rendição entre uma potência vencedora e um pobre país derrotado. Esteja mascarado como estiver, a Assírio não deixa de ser o exemplo de uma editora derrotada e humilhada numa guerra instalada no universo das editoras em Portugal. Talvez a Assírio possa gozar do prestígio de ter sido uma das últimas “grandes” a cair, mas nem tanto assim. Há que culpar esta editora e os seus responsáveis por parte da derrota que sofreu. A política editorial da Assírio, especialmente no campo da poesia portuguesa inédita, há muito que tinha abdicado de concorrer com a Relógio d’Água e com a Cotovia, bem como com as pequenas editoras deste ramo. Na publicação de poesia estrangeira, a Assírio continuou a desempenhar um papel fundamental, mas isto resultou muito mais do esforço titânico do seu grupo de tradutores – encabeçado pelo enorme José Bento – do que de uma política editorial perfeitamente intencional e ponderada. A incapacidade que esta editora tinha vindo a demonstrar em renovar e aumentar este corpo de colaboradores era já um prenúncio de que uma meia dúzia de bravos soldados seria sempre insuficiente para evitar o descalabro.
Esquece, também, o caso da Quetzal. Não tendo um catálogo de poesia tão relevante quanto o da Assírio, era uma editora com uma razoável quota de publicação neste género, a qual, desde então, se varreu do mapa. Devemos, legitimamente, temer que a Assírio seja vergada a este mesmo destino.
Por último, esquece que na lógica comercial praticada por estes conglomerados a poesia é, quando existe, um parente pobre. A poesia não vende, porque não a vendem. A sê-lo, em condições aproximáveis dos romances, dos livros de crónicas e dos livros de auto-ajuda, o panorama não seria certamente o mesmo. A ideia de que a poesia não vende é muito menos uma conclusão óbvia do que é o resultado de uma vontade coerente com uma política de silenciamento ou emparedamento de qualquer oposição. O lugar reservado aos poetas nas editoras parece ser um só: o apodrecimento, com o acréscimo de que, agora, esse apodrecimento é aproveitado como espéctaculo de circo, como freak show de uns poucos loucos e aluados, de uns “alternativos”. Claro que a culpa disto é, em grande parte, dos próprios autores de poesia que usam e abusam da farda da marginalidade sem perceberem que não têm verdadeiramente a liberdade de o fazer, apenas lhes foi dada uma licença para tal e isto é devastador. O resultado é o nascimento de uma marginalidade fútil e ensaiada, como se o tema da poesia, em vez do humano, fosse agora esse circo. Neste espaço, cresce quase sempre uma poesia que ou brinca a ser poesia ou se ridiculariza a si própria. Aquele verso do Charles Simic que diz que “O tempo dos poetas menores está a chegar” mais tarde ou mais cedo vai ter que ser interpretado à letra: caminhamos para um tempo só de poetas menores.
Estes não são indícios favoráveis ao futuro do catálogo de poesia da Assírio. Aliás, se pensarmos no caso da publicação de poesia portuguesa inédita, que a Assírio já praticamente tinha abandonado, as palavras de António Guerreiro não são suficientes para expressar o risco mais natural deste protocolo: o abandono total da publicação de poesia inédita portuguesa ou, então, o abastardamento desta pela rejeição dos princípios editoriais que, apesar de trémulos, a Assírio ainda mantinha.
Não esquecendo as palavras de Vasco Teixeira, responsável editorial da Porto Editora, na sua “profecia” sobre a publicação de poesia, António Guerreiro não discute uma das partes essenciais dessa declaração: o papel das pequenas editoras na publicação de poesia. Estas têm desempenhado, em Portugal, as funções que noutros países cabem a grandes editoras. Basta olhar para Espanha e pensar na Hipérion, na Visor, na Bartleby e na DVD. Tirando a Assírio, as únicas editoras de maior dimensão a terem um catálogo de poesia relevante são a Cotovia e a Relógio d’Água. Em qualquer um destes casos, a publicação é parca e, aparentemente, indissociável dos seus editores específicos – André Jorge e Francisco Vale, respectivamente – que, melhor ou pior, têm tomado essa tarefa em mãos, parecendo, tal como no caso da Assírio, que com outras pessoas esses projectos já nem sequer existiriam. Neste espaço, as pequenas editoras têm florescido, apesar das dificuldades que todas elas enfrentam e, também, da dependência que algumas têm das fontes de financiamento exteriores à sua actividade. Elas são, também, projectos absolutamente pessoais: veja-se o paradigma cristalizado por Vítor Silva Tavares na &etc.
Estes projectos, quando referidos neste âmbito, têm sido quase sempre unanimemente enaltecidos sem que a verdadeira situação seja exposta: as pequenas editoras não são, para a poesia, uma solução viável. O seu reino instalado, na poesia portuguesa, não é uma solução, não é uma cura, é apenas um sintoma de uma grave patologia. Na melhor perspectiva, estas editoras são paliativos para um animal moribundo o qual, daqui a pouco, será mais recomendável para o abate que para o tratamento. Não se trata da morte da poesia, como a incompetência apocalíptica de alguns pressagia, mas antes da morte da sua acessibilidade, da morte de um circuito eficiente de distribuição que procure permitir que o número de leitores suplante satisfatoriamente o número de autores.
Este protocolo com a Porto Editora apenas será benéfico se o poderio financeiro do conglomerado sustentar um renascimento da antiga Assírio & Alvim. Isto não é um desejo pessoal, é uma obrigação que pesa necessariamente sobre uma editora que assumiu uma quota de mercado tão relevante da literatura em português. Se servir apenas para continuar o mesmo caminho estreito em que a Assírio já estava a entrar ou, pior, se servir para o estreitar ainda mais, estaremos cada vez mais próximos da morte.
1 comentário:
Excelente texto. Obrigada pela clareza.
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