quinta-feira, agosto 04, 2011

Carta do Morto Pobre

Bem. Agora que já não me resta qualquer possibilidade de trabalhar-me (oh trabalhar-se! não se concluir nunca!), posso dizer com simpleza a cor da minha morte. Fui sempre o que mastigou a sua língua e a engoliu. O que apagou as manhãs e, à noite, os anúncios luminosos e, no verso, a música, para que apenas a sua carne, sangrenta pisada suja - a sua pobre carne o impusesse ao orgulho dos homens. Fui aquele que preferiu a piedade ao amor, preferiu o ódio ao amor, o amor ao amor. O que se disse: se não é da carne brilhar, qualquer cintilação sua seria fátua; dela é só o apodrecimento e o cansaço. Oh, não ultrajes a tua carne, que é tudo! Que ela, polida, não deixará de ser pobre e efêmera. Oh, não ridicularizes a tua carne, a nossa imunda carne! A sua música seria a sua humilhação, pois ela, ao ouvir esse falso cantar, saberia compreender: "sou tão abjecta que dessa abjeção sou digna". Sim, é no disfarçar que nos banalizamos porque ao brilhar, todas as cousas são iguais - aniquiladas. Vê o diamante: o brilho é banal, ele é eterno. O eterno é vil! é vil! é vil!
Porque estou morto é que digo: o apodrecer é sublime e terrível. Há porém os que não apodrecem. Os que traem o único acontecimento maravilhoso de sua existência. Os que, de súbito, ao se buscarem, não estão... Esses são os assassinos da beleza, os fracos. Os anjos frustrados, papa-bostas! oh como são pálidos!

- Ferreira Gullar

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