domingo, julho 31, 2011

Oito poemas de Luis Fernando Chivite


(Espécie de haiku da visão inicial
)

Aquela precariedade do princípio.
Aquela austeridade.
Quando tudo era claro, quando havia ainda tempo.



(Espécie de haiku daqueles que fogem)

Céleres mas silentes.
Os fugitivos.
Snifando a escuridão minguante agora que amanhece.



Poema da aterradora infância

O abismo podia aparecer
por trás da caixa dos lápis.

A noite parecia enorme a tal ponto
que bastava permanecer completamente quieto
para se sentir perdido.

O simples som de uns pés descalços
no piso de cima
podia deixar uma marca indelével
nos olhos fechados.



Transe kafkiano

Na noite anterior deixei tudo preparado,
tinha pressa de sair, queria
chegar à cidade logo que possível.

De modo que pela manhã
nem sequer fiz café, contentei-me
com beber água da torneira
e pegar numa maçã para a viagem.

Deixei a casa desordenada,
a cama por fazer, baixei as persianas
abotoando a camisa e ajeitando
o cabelo.

Mas ao abrir a porta era já tarde,
o ar tornava-se áspero, estava a escurecer
e recuei cansado e abatido.



Anotações para um futuro manifesto, 8

Como lema fundamental para estes estranhos
tempos de miragens e mutações:
não pertencer nunca a nenhuma matilha.

Não formar parte de nenhuma patrulha
de linchadores. Não se acercar jamais
de nenhuma espécie de grupo enaltecendo-se.

Nem agentes uniformizados, nem portadores
de insígnias, nem trauteadores de marchas
nacionais.

Compreendo perfeitamente onde isto me situa.
E compreendo perfeitamente que assim se corre o risco
de ser convertido em vítima da noite para o dia.

Sem se dar conta. Sem saber por quê.
Sem possibilidade de remissão. É sempre assim.
O que é que se há-de fazer.



Poema da não aceitação

A minha amada conserva em seu olhar
a luz de quem não aceitou ainda
o mundo.

É algo facilmente perceptível
em algumas pessoas,
só é preciso fixá-las por um bocado para notar
quem já aceitou o mundo
e quem ainda não o fez: apaga-se algo.

Não há que aceitar o mundo
antes dos quarenta.
Fazê-lo antes denota um suspeito
excesso de bons modos,
algo como uma interessada
convivência com o estabelecido.

Isto é apenas uma opinião minha, é claro,
e dou-me conta de que não soa
lá muito bem nos tempos que correm.
Nem noutros.

Mas o que posso fazer; a minha amada
ainda tem o brilho da negação.
É indómita, usa o cabelo solto, nunca
tira o corpo fora, nunca rejeita um desafio.

Ficar a seu lado pode ser perigoso,
mas, meus amigos, creiam-me se vos digo
que vale bem a pena correr esse risco.



Anotações para um futuro manifesto, 11

De repente estás vivo: e isso está bem.

É como pensar que poderias perfeitamente
estar morto, mas não é o que se passa.

Não é que isso signifique algo: não pretendo
dar a entender que radique aqui o segredo
para a felicidade, nem nada do género.

A única coisa que digo é que há vezes
em que repentinamente te dás conta
de que não estás morto: de que vives.

E isso é tudo.



Epitáfio sarcástico para si mesmo

Na realidade, estava ainda vivo
quando me enterraram.

Sempre consegui enganá-los
com uma certa facilidade.

Só que nunca
me serviu de nada.

in Apuntes para un futuro manifiesto, DVD

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