John Gray, em “Al-Qaeda e o Significado de Ser Moderno” (Relógio d’Água, 2004), afirma, num capítulo convenientemente intitulado “Aquilo que a Al-Qaeda destrui”, que “os guerreiros suicidas que atacaram Washington e Nova Iorque a 11 de Setembro de 2001 fizeram mais do que matar milhares de civis e demolir o World Trade Center. Destruíram o mito dominante do Ocidente”. Uma visão igualmente polémica foi exposta por Jean Baudrillard num artigo originalmente publicado no Le Monde de 3 de Novembro de 2001, que coloca a imoralidade dos atentados em pé de igualdade com a imoralidade da globalização, ao mesmo tempo que afirma que os ataques foram uma espécie de sonho tornado realidade, num mundo que desejava interiormente a queda do poder norte-americano.
Estas teses, apesar das críticas que podem suscitar – e, como se sabe, suscitaram –, têm como pano de fundo uma questão cujo interesse não pode ser obscurecido: com a queda do Muro de Berlim, o mundo ocidental ficou sem o seu inimigo. Esta afirmação, podendo não ser absolutamente rigorosa, acaba por traduzir uma percepção mais ou menos generalizada e que, por isso mesmo, nos permite afirmar que após o colapso da União Soviética o inimigo do Ocidente, pelo menos, perdeu o seu rosto. E sem inimizade, não há curiosidade, não há o secreto desejo de afirmação da nossa identidade pelo confronto com aquela que é diferente da nossa.Antes do 11 de Setembro, a curiosidade pelo Islão era de cariz antropológico e, seguramente, não era distinta da despertada por qualquer outra grande religião. O terrorismo islâmico dificilmente seria abordado fora da sua relação com o conflito israelo-árabe e como variante do terrorismo político clássico (hoje já lhe podemos chamar assim) na Europa após a Segunda Grande Guerra. Na trágica manhã de Setembro o inimigo ganhou um novo rosto – que, no entanto, já se nos vinha anunciando em atentados anteriores, sem que nos apercebêssemos bem disso. Nos escombros das Torres Gémeas, o Ocidente foi obrigado – dessa feita sem remédio – a virar a atenção para a mais recente alteridade: a Al-Qaeda e a sua jihad à escala global.Desde então, embora infelizmente em menor expressão que o tema do terrorismo, têm surgido em quase todas as editoras um número particularmente significativo de publicações sobre o islamismo, a sua filosofia e as suas dimensões políticas. Criou-se, assim, um “rosto” de um novo inimigo e deu-se origem a um interesse sem precedentes religião em nome da qual, supostamente, os atentados foram cometidos.Não se alheando deste processo e, também, dos perigos potenciais da identificação (abusiva e sociologicamente incorrecta) entre terrorismo e Islão, este “Novo Dicionário do Islão” (Casa das Letras, 2010) coloca, logo na capa, uma questão indispensável ao leitor: porque é que o Islão atrai e amedronta? No seu seio surgiu a terrível seita dos assassinos, mas nele nasceram os grandes poetas Al-Farazdaq (p. 113), Jarir – os dois grandes rivais – e Abu Nuwas (p. 24). É a religião dos filósofos Avicena (p. 159) e Averróis (p. 158), mas também de Sayyid Qutb (p. 297), o ideólogo da Irmandade Muçulmana (p. 167) – para sermos precisos deveríamos dizer do Islão político moderno revolucionário e anti-ocidental –, que a jornalista Margarida Santos Lopes, discutivelmente, qualifica como o “ideólogo da jihad”, colocando algo do definido na definição.Esta nova versão do “Dicionário do Islão” (Editorial Notícias, 2002), revista e aumentada, tal como a sua primeira edição, corresponde a uma enciclopédia, organizada alfabeticamente, e completada por uma vasta cronologia do Islão, que começa em 25 a.C., muito antes do nascimento de Maomé, incluindo acontecimentos que pouco ou nada contribuem para a compreensão do Islão, a não ser numa visão excessivamente macro-histórica, como as guerras entre persas e romanos ou o édito de Milão. O “Novo Dicionário do Islão”, nas palavras da autora, procura “dar algumas respostas apresentando palavras, figuras e histórias que moldaram, e ainda definem, a fé revelada por um arcanjo, em 610 da era cristã, a um mercador a quem foi dado o nome até então invulgar de Muhammad (Maomé)” (p. 15).Talvez a questão que se coloca na capa do livro e que autora, na sua introdução, reitera, seja demasiado ambiciosa para uma obra que está longe do “The Oxford Encyclopedia of the Modern Islamic World”, de John L. Esposito – lamentavelmente sem qualquer edição portuguesa – ou da profundidade do esforço de compreensão do “Islão – Passado, Presente e Futuro” (Edições 70, 2010), de Hans Küng, isto para não referir as obras de pensadores islâmicos modernos como Muqtedar Khan (1966), autor do importante “Debating Moderate Islam: The Geopolitics of Islam and the West”, ou de Syed Zafarul Hasan (1885-1949). Contudo, ao ler este “Novo Dicionário do Islão”, o leitor deve ter presente que a referida questão é mais um expediente editorial que uma declaração de intenções da autora, acabando por não prejudicar o propósito legítimo deste livro e a sua notável execução, tanto pelo vasto número de figuras e conceitos abordados, como pelo rigor que normalmente pauta a descrição desses conceitos, e, também, pela qualidade da escrita, de pendor jornalístico e com um grau satisfatório de acessibilidade e ritmo, o que faz com que o “Novo Dicionário do Islão” não seja apenas uma enciclopédia de consulta ocasional mas, também, uma pequena história do Islão, só que alfabeticamente organizada. Estamos, claramente, perante uma aposta ganha.Há, não obstante, alguns reparos que podem ser feitos. Alguns conceitos centrais para a compreensão do moderno terrorismo islâmico e da sua ideologia encontram-se escassamente desenvolvidos como o de “jihad”, que mal ocupa uma página sequer, ou “jahiliyya”, este último um relevantíssimo conceito recuperado por vários estudiosos indianos nos anos trinta e quarenta do século XX, cujo significado arcaico de ignorância religiosa aplicado aos pagãos da Península Arábica que, nos tempos de Maomé, se recusavam a aceitar a unicidade de Deus, foi substituído pela ideia, central no pensamento de Sayyd Qutb, de uma influência nefasta da civilização ocidental nas concepções, instituições e valores da tradição islâmica, através da construção de um inimigo desumanizado (o “outro” na perspectiva do Islão político), objecto permanente de ataque, religiosamente legitimado, pelo verdadeiro “crente”. O mesmo acontece com o conceito de “ummah”, que estando inicialmente ligado a uma ideia de comunidade de fé (comunidade dos crentes), é substituído por uma versão mais expansionista, vinculada às ambições de uma autoridade política unificada, isto é, de um Império Árabe na mão dos califas omíadas, uma mudança de paradigma que, para utilizarmos a terminologia de Hans Küng, teve um impacto inegável no Direito islâmico, a ponto de este autor considerar que não se pode falar de um verdadeiro Direito especificamente islâmico nos tempos do Corão e do primeiro califado, anteriores à chegada ao poder dos omíadas.Também se sublinha a ausência de referências a alguns dos mais importantes teólogos e pensadores islâmicos do século XX, como, por exemplo, o polémico Abu Ala Maududi, ou aos clérigos das facções mais radicais do Islão, como Safar al-Hawali, Abu Muhammad al-Maqdisi ou Abu Qatada. A verdadeira compreensão dessa parte do Islão que “amedronta” fica seriamente prejudica pela omissão de referência ao pensamento dos seus ideólogos.Apesar destas omissões, o “Novo Dicionário do Islão” constitui um instrumento de consulta bastante completo não só sobre a religião islâmica, mas também sobre a história, a literatura, a filosofia e a política que a ela surgem associadas. Importa saudar, por exemplo, a inclusão de importantíssimos conceitos de Direito islâmico como o de descrença, ou seja, “kufr” (p. 204), o de “dhimmi” (p. 103), os não muçulmanos que viviam em territórios muçulmanos e que se encontravam protegidos por um tratado de rendição ou pacto de protecção, normalmente referido como “dhimmah”, ou o de retaliação, “qisas” (p. 291), que revelam um estudo particularmente aprofundado e especializado do vasto universo da cultura islâmica; é preciso ter presente que é na base da projecção manipulatória destes conceitos básicos que se estruturam muitos dos elementos da actualidade do fenómeno do islamismo radical e isso não passou desapercebido à autora.Desde que o rosto de Bin Laden (p. 81) se tornou infamemente conhecido de todo o mundo, desde a aterradora execução do jornalista Daniel Pearl, filmada e divulgada por todo o mundo – e isto para fornecer apenas alguns exemplos –, o Ocidente tem observado o Islão com a desconfiança de quem se cruza com o seu inimigo mortal e absoluto. O resultado disto comporta riscos que são relevantes: se o Islão quer a qualquer custo a aniquilação do Ocidente, logo o Ocidente só poderia sobreviver mediante a aniquilação do Islão. Por isto mesmo, convém sempre saudar a publicação de obras como esta que, dando uma visão panorâmica do vasto universo da cultura islâmica, oferecem aos leitores instrumentos de compreensão e de respeito por esta cultura, possibilitando que a nossa curiosidade pelo Islão ultrapasse estereótipos e generalizações que, mais do que inexactas – que efectivamente o são –, representam um perigo largamente tributário do desconhecimento. É também neste sentido que o livro de Margarida Santos Lopes constitui uma aposta ganha.
Nota: quatro estrelas
*Texto publicado no Ípsilon de 1 de Julho
sexta-feira, julho 01, 2011
Novo Dicionário do Islão - Margarida Santos Lopes
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