“A Pior das Guerras – genocídio, extermínio e violência no século XX” (Casa das Letras, 2011) é a tradução portuguesa de um livro de Daniel Jonah Goldhagen – professor de Ciência Política em Harvard e autor do polémico “Os Carrascos Voluntários de Hitler – o povo alemão e o Holocausto” (Editorial Notícias, 1999) – intitulado “Worse than War, Eliminationism, and the Ongoing Assault on Humanity” (2009).
Porquê “A Pior das Guerras”? Que razão poderá ter levado alguém a traduzir assim o emblemático e poderoso título desta obra em vez de optar pela solução mais simples e, seguramente, mais fiel ao original, “Pior do que a Guerra”? Quando Goldhagen qualifica o extermínio em massa como pior do que a guerra, coloca o título sob a alçada de um conceito de guerra muito específico. Há, por um lado, a guerra, cuja definição se pode conter dentro dos limites estabelecidos por Hugo Grócio no seu “Direito da Guerra e da Paz” (1625) e, por outro lado, o extermínio, tenha este acontecido ou não associado a um qualquer episódio bélico. Por outras palavras, agora mais clausewitzianas, admitindo que o extermínio possa ser a continuação de uma qualquer política por outros meios, certamente esses meios não são os mesmos que os de uma guerra que, assim, não corresponde ao extremo máximo de uma inimizade, mas, antes, a um conceito limitado por regras jurídicas. Esta possibilidade de separação entre os dois conceitos é fundamental à compreensão do propósito de Goldhagen com este livro, patente logo no primeiro capítulo de “A Pior das Guerras” em que a utilização de bombas nucleares sobre Hiroxima e Nagasaqui é claramente separada das demais acções de guerra no Pacífico.
Assim, traduzir esta obra como “A Pior das Guerras” é deitar a perder, logo à partida, grande parte do impacto do título original e, ao mesmo tempo, afastar o leitor de uma chave de compreensão essencial para aceder às intenções do livro e do seu autor. Não é por acaso que o segundo capítulo, que começa com o exemplo do massacre do povo herero às mãos do Império Colonial Alemão, se intitula exactamente “Pior do que a Guerra”, sendo que, neste caso, a opção de tradução foi, curiosamente, a mais simples e fiel ao original. Não se ficam pelo título, contudo, as críticas às opções de tradução. No subtítulo português faz-se referência ao conceito de genocídio, parecendo ignorar-se que o autor deste livro prefere substitui-lo por outro conceito, o de eliminacionismo, o que se pode verificar logo no primeiro capítulo que se intitula “Eliminacionismo e Não Genocídio”.
A utilização do conceito de eliminacionismo é, aliás, um dos traços mais notáveis desta obra. Com ele, Goldhagen chama a atenção para um pequeno detalhe não poucas vezes ignorado a este propósito: há um conteúdo existencial na ideia de extermínio em massa. O antagonismo que se estabeleceu entre a visão que o próprio perpetrador tem da sua identidade e a visão que tem da sua alteridade face à vítima tornou-se de tal forma extrema que a eliminação é o veículo de anulação desse oposto assumido como insustentável. As políticas de eliminacionismo, como Goldhagen consegue demonstrar em vários trechos da obra, surgem quase sempre quando a afirmação de uma determinada identidade por um povo, um governo ou qualquer grupo politicamente preponderante é de tal forma extrema que a convivência com o “outro” é absolutamente inviável. Uma parte substancial do horror dos assassinatos em massa, por mais que a actualidade neutralizada o procure negar, reside exactamente nessa ideia já clássica da “banalização do mal”, no sentido empregue por Hannah Arendt, relativamente ao Holocausto: trata-se, tão-só, de um reflexo, desproporcionado (paradoxalmente desproporcionado) de um processo que cada um de nós percorre, enquanto construção psicológica, quase todos os dias, através da afirmação daquilo que somos pela observação nos outros daquilo que pensamos que não somos. A ideologia “liquidacionista”, chamemos-lhe assim, acaba por dar corpo, levando-o à prática, a essa espécie de “instinto básico”, qual demónio à solta, latente em todos nós.
Outra das especificidades aterradoras do extermínio em massa, justamente destacada por Goldhagen, refere-se à natureza da inimizade que lhe é inerente: “Que alguém pudesse querer matar uma pessoa que conhece, um inimigo confesso, (...) é algo que a maior parte das pessoas pode compreender” (p. 85). O inimigo que subjaz ao eliminacionismo não é, de facto, um mero inimigo privado com o qual se tem uma contenda. A contenda, bem como a inimizade, é, neste caso, pública (de raiz sociológica, mesmo), porque impele todos os membros de uma determinada comunidade a ver os exterminados como inimigos seus porque o são também dos demais e, ao mesmo tempo, tornam essa inimizade um dos factores de relação mais importantes entre os membros dessa mesma comunidade.
“A Pior das Guerras” é uma continuação do estudo de Daniel Jonah Goldhagen sobre os extermínios em massa e a violência do século XX iniciado em “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, abordando agora um âmbito muito mais lato que as políticas eliminacionistas do Holocausto, da África do Sul à Ex-Jugoslávia, do Camboja à Guatemala, chamando ao texto o resultado de uma pesquisa documental imponente e expondo essa característica comum a todo o terror eliminacionista: expressar – explorar – um processo psicológico que, de tão básico, é fácil de encontrar, embora com outras gradações, na própria essência humana. Nisto, como em tantos outras coisas, devemos aprender a desconfiar de muitos dos nossos sentimentos e paixões, lutando contra o seu exacerbamento, mantendo presos, enfim, os demónios que, de uma ou outra forma, existem dentro de nós.
Numa vertente menos positiva, este livro não deixa de ser permeável a certas críticas, curiosamente coincidentes com aquelas já presentes em alguns dos textos sobre “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, como, por exemplo, Omer Bartov que num artigo publicado na New Republic em Abril de 1996 acusou Goldhagen de fazer uma interpretação descontextualizada do Holocausto e de falhar a abordagem à questão essencial a este propósito: “o que é que faz do Holocausto um acontecimento absolutamente sem precedentes na história humana?”. No caso deste livro, no meio de tanto suporte documental e de tanto detalhe estatístico – tudo entrelaçado numa trama narrativa desenhada pelo autor –, cada um dos extermínios em causa acaba por surgir com um certo nível de descontextualização. Por outro lado, se o extermínio em massa não é uma novidade do século XX, falta neste livro uma ligação com a história anterior. Se, pelo contrário, o autor entende que estes extermínios em massa revelam um terror absolutamente inédito, o entricheiramento quase completo desta obra no século XX prejudica em muito a possibilidade de comunicar essa ideia ao leitor.
No cômputo geral, esta obra pode ser comparada a um mosaico: quanto mais nos aproximamos dos detalhes, mais a construção total vai perdendo clareza.
Nota: quatro estrelas
Texto publicado no Ípsilon de 10 de Junho
Assim, traduzir esta obra como “A Pior das Guerras” é deitar a perder, logo à partida, grande parte do impacto do título original e, ao mesmo tempo, afastar o leitor de uma chave de compreensão essencial para aceder às intenções do livro e do seu autor. Não é por acaso que o segundo capítulo, que começa com o exemplo do massacre do povo herero às mãos do Império Colonial Alemão, se intitula exactamente “Pior do que a Guerra”, sendo que, neste caso, a opção de tradução foi, curiosamente, a mais simples e fiel ao original. Não se ficam pelo título, contudo, as críticas às opções de tradução. No subtítulo português faz-se referência ao conceito de genocídio, parecendo ignorar-se que o autor deste livro prefere substitui-lo por outro conceito, o de eliminacionismo, o que se pode verificar logo no primeiro capítulo que se intitula “Eliminacionismo e Não Genocídio”.
A utilização do conceito de eliminacionismo é, aliás, um dos traços mais notáveis desta obra. Com ele, Goldhagen chama a atenção para um pequeno detalhe não poucas vezes ignorado a este propósito: há um conteúdo existencial na ideia de extermínio em massa. O antagonismo que se estabeleceu entre a visão que o próprio perpetrador tem da sua identidade e a visão que tem da sua alteridade face à vítima tornou-se de tal forma extrema que a eliminação é o veículo de anulação desse oposto assumido como insustentável. As políticas de eliminacionismo, como Goldhagen consegue demonstrar em vários trechos da obra, surgem quase sempre quando a afirmação de uma determinada identidade por um povo, um governo ou qualquer grupo politicamente preponderante é de tal forma extrema que a convivência com o “outro” é absolutamente inviável. Uma parte substancial do horror dos assassinatos em massa, por mais que a actualidade neutralizada o procure negar, reside exactamente nessa ideia já clássica da “banalização do mal”, no sentido empregue por Hannah Arendt, relativamente ao Holocausto: trata-se, tão-só, de um reflexo, desproporcionado (paradoxalmente desproporcionado) de um processo que cada um de nós percorre, enquanto construção psicológica, quase todos os dias, através da afirmação daquilo que somos pela observação nos outros daquilo que pensamos que não somos. A ideologia “liquidacionista”, chamemos-lhe assim, acaba por dar corpo, levando-o à prática, a essa espécie de “instinto básico”, qual demónio à solta, latente em todos nós.
Outra das especificidades aterradoras do extermínio em massa, justamente destacada por Goldhagen, refere-se à natureza da inimizade que lhe é inerente: “Que alguém pudesse querer matar uma pessoa que conhece, um inimigo confesso, (...) é algo que a maior parte das pessoas pode compreender” (p. 85). O inimigo que subjaz ao eliminacionismo não é, de facto, um mero inimigo privado com o qual se tem uma contenda. A contenda, bem como a inimizade, é, neste caso, pública (de raiz sociológica, mesmo), porque impele todos os membros de uma determinada comunidade a ver os exterminados como inimigos seus porque o são também dos demais e, ao mesmo tempo, tornam essa inimizade um dos factores de relação mais importantes entre os membros dessa mesma comunidade.
“A Pior das Guerras” é uma continuação do estudo de Daniel Jonah Goldhagen sobre os extermínios em massa e a violência do século XX iniciado em “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, abordando agora um âmbito muito mais lato que as políticas eliminacionistas do Holocausto, da África do Sul à Ex-Jugoslávia, do Camboja à Guatemala, chamando ao texto o resultado de uma pesquisa documental imponente e expondo essa característica comum a todo o terror eliminacionista: expressar – explorar – um processo psicológico que, de tão básico, é fácil de encontrar, embora com outras gradações, na própria essência humana. Nisto, como em tantos outras coisas, devemos aprender a desconfiar de muitos dos nossos sentimentos e paixões, lutando contra o seu exacerbamento, mantendo presos, enfim, os demónios que, de uma ou outra forma, existem dentro de nós.
Numa vertente menos positiva, este livro não deixa de ser permeável a certas críticas, curiosamente coincidentes com aquelas já presentes em alguns dos textos sobre “Os Carrascos Voluntários de Hitler”, como, por exemplo, Omer Bartov que num artigo publicado na New Republic em Abril de 1996 acusou Goldhagen de fazer uma interpretação descontextualizada do Holocausto e de falhar a abordagem à questão essencial a este propósito: “o que é que faz do Holocausto um acontecimento absolutamente sem precedentes na história humana?”. No caso deste livro, no meio de tanto suporte documental e de tanto detalhe estatístico – tudo entrelaçado numa trama narrativa desenhada pelo autor –, cada um dos extermínios em causa acaba por surgir com um certo nível de descontextualização. Por outro lado, se o extermínio em massa não é uma novidade do século XX, falta neste livro uma ligação com a história anterior. Se, pelo contrário, o autor entende que estes extermínios em massa revelam um terror absolutamente inédito, o entricheiramento quase completo desta obra no século XX prejudica em muito a possibilidade de comunicar essa ideia ao leitor.
No cômputo geral, esta obra pode ser comparada a um mosaico: quanto mais nos aproximamos dos detalhes, mais a construção total vai perdendo clareza.
Nota: quatro estrelas
Texto publicado no Ípsilon de 10 de Junho
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