sexta-feira, maio 27, 2011

birds in the night

O governo francês – ou foi o governo inglês? – colocou uma lápide
Na casa número oito de Great College Street, Camden Town, Londres,
Onde Rimbaud e Verlaine, par exótico, tiveram um quarto,
Viveram, beberam, trabalharam, fornicaram
Durante algumas semanas tormentosas.
Ao acto inaugural assistiram decerto embaixador e presidente da câmara,
Todos os que em vida de Verlaine e Rimbaud foram seus inimigos

A casa é triste e pobre, como o bairro,
Com a tristeza sórdida que vai com o pobre,
Não a tristeza fúnebre do que é rico sem espírito.
Quando a tarde cai, como naquela outrora
Sobre o passeio, húmido e cínzeo ao ar, um realejo
Toca, e os vizinhos, que vêm do trabalho,
Dançam, os jovens; os outros vão para a taberna.
Breve foi a amizade de Verlaine o bêbado
E de Rimbaud o vadio, e em constante querela.
Mas podemos pensar que acaso um bom momento
Houve para os dois, pelo menos ao recordarem
Como tinham deixado para trás mãe insuportável e esposa enfadonha.
Mas a liberdade não é deste mundo, e os libertos
Em ruptura com todos, tiveram de pagá-la por alto preço.
Sim, estiveram ali, di-lo a lápide atrás do muro,
Presos ao seu destino: a amizade impossível, a amargura
da separação, e logo o escândalo; para um
o tribunal, dois anos de cadeia, graças aos costumes
Que a sociedade e a lei condenam, pelo menos nos nossos dias; para o outro
Errar sozinho de um a outro canto da terra
Fugindo ao nosso mundo e ao seu famoso progresso.
O silêncio de um e a banal loquacidade do outro
Compensaram-se. Rimbaud repeliu a mão que o oprimia
A sua vida; e Verlaine beija-a, aceitando o castigo.
Um amarra à cintura o ouro ganho; o outro
Malgasta-o em absinto e mulherzinhas. Mas ambos
Sempre em conflito com as autoridades, com a gente
Que enriquece e triunfa com o trabalho dos outros.
Então, até a negra prostituta tinha direito a insultá-los;
Hoje, como o tempo passou, como passa no mundo,
Vida à margem de tudo, sodomia, borracheira, versos escarnecidos,
Já não importam neles, e a França usa os seus nomes e as suas obras
para maior glória da França e da sua arte lógica.
Os seus passos são investigados, dão-se a público
Detalhes íntimos das suas vidas. Ninguém protesta agora, nem se assusta.
«Verlaine? Ora adeus, caro amigo, um autêntico sátiro
Quando se tratava de mulheres; bem normal era o homem;
Tanto como você, ou eu. Rimbaud? Católico sincero, como já está provado».
E recitam-se trechos do «Barco Ébrio» e do soneto às "Vogais".
De Verlaine não se recita nada porque não está na moda
Como o outro, de quem lançam textos falsos em edições de luxo.
Ouvirão os mortos, o que os vivos dizem deles?
Oxalá não: há-de ser um alívio esse silêncio interminável
Para aqueles qe viveram pela palavra e por ela morreram
Como Rimbaud e Verlaine. Mas o silêncio ali não impede
Aqui a farsa elogiosa e repugnante. Já alguém anelou
Que a humanidade tivesse uma só cabeça, para cortá-la.
Exagerava talvez: fosse apenas uma carocha, para pisar.

- Luis Cernuda
(tradução de Mário Cesariny)
in Pena Capital, Assírio & Alvim

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