Os judeus foram responsáveis pela morte de Jesus Cristo. Morreram por isso. Os judeus roubavam hóstias consagradas para reencenar nelas a morte de Jesus Cristo. Morreram por isso. Os judeus utilizaram sangue de crianças em rituais demoníacos, os judeus envenenaram poços, os judeus espalharam a peste negra, o capitalismo, o bolchevismo. Morreram por tudo isso. Não é preciso ler mais que as primeiras cem páginas da “História do Anti-Semitismo” (Edições 70, 2010) para perceber que muito antes dos primeiros centímetros cúbicos de gás terem atravessado as canalizações de Treblinka, muito antes de Paul Celan ter escrito sobre essa morte que foi um mestre aus Deutchland, já o “ódio que visa os judeus só por serem judeus” (p. 15) tinha cumprido uma longa e infame história. Aliás, os próprios judeus participaram do fenómeno ao construírem e teorizarem o ódio auto-referente, ao qual o filósofo alemão Theodor Lessing (1872-1933) se referiu num livro, editado em 1930, “O ódio judaico de si próprio” (Der jüdische Selbsthass), que está na origem da categoria do “self-hating jew”.
“História do Anti-Semitismo” é o livro mais recente da cada vez mais louvável colecção Lugar da História, das Edições 70 – a juntar à “História dos Judeus Portugueses”, de Carsten L. Wilke, publicado em 2009 –, que traduz para português a obra colectiva “Jødehat: Antisemittismen historie fra antikken til i dag”. Assinada por três historiadores noruegueses – Trond Berg Eriksen, Håkon Harket e Einhart Lorenz – é composta por trinta e cinco textos, em forma de ensaio curto, apresentados numa sequência mais ou menos cronológica que procura descrever alguns dos episódios centrais da história do ódio para com os judeus.
Nesta perspectiva, uma das críticas que pode, desde logo, ser apontada a esta obra é o parco desenvolvimento dado ao período que vai desde a Antiguidade ao século XVIII, que cabe em pouco mais de duzentas páginas, contra as mais de 400 páginas dedicadas aos últimos três séculos. Contudo, tal disparidade seria facilmente esquecida se a informação fornecida nessas duas centenas de páginas ultrapassasse, em densidade e em profundidade, uma consulta às várias páginas disponíveis na wikipédia sobre o tema. Seria útil, também, que a sequência dos primeiros ensaios, para além da simples cronologia, investisse em dar ao leitor chaves de compreensão histórica do tema, a qual, infelizmente, aqui é dificultada pelos saltos temporais, espaciais e, até, temáticos do narrador que, muitas vezes, pouco ajudam à leitura. Para dar um exemplo, as importantes disputas medievais entre os teólogos judaicos e os teólogos cristãos, modelos proverbiais do anti-judaísmo de motivação religiosa, na sua génese histórica, não merecem mais que dois parágrafos centrados no episódio de Paris, em 1240, não se descortinando qualquer referência às disputas de Barcelona (1263; de longe a mais importante de todas, convocada pelo Rei Jaime I de Aragão, na qual se destacaram Raimundo de Peñafor e o teólogo judeu Nahmanides) e à de Tortosa (1413-1414).
No sentido oposto, a tendência desproporcionada para focalizar e desenvolver o conceito de anti-semitismo no período que vai da Kristalnacht à Solução Final, que ocupa grande parte dos estudos históricos dedicados a este tema, é aqui habilmente moderada pelos três historiadores sem que, com isso, tenham corrido o risco de confundir o “ assassínio de seis milhões de judeus” (pp. 497 e ss.) como apenas um episódio entre muitos, diluindo na história a singularidade do genocídio hitleriano.
O que é o anti-semitismo? O ódio aos judeus por serem judeus. A definição convocada pelos três autores no prefácio à obra é simples, mas perfeitamente operacional para um trabalho desta envergadura. Talvez fosse excessivo e, em certa medida, descabido exigir a uma obra que se propõe narrar e interpretar “a história do ódio europeu aos judeus (...), uma narrativa sombria das nossas relações históricas com o «outro»” (p. 19) o aperfeiçoamento de um conceito de anti-semitismo com horizontes mais restritos. Quanto à vertente narrativa, esta “História do Anti-Semitismo” é um trabalho importante, com uma prosa pouco floreada e verdadeiramente eficaz – num estilo conciso próprio da historiografia anglo-saxónica –, e com uma cadência de leitura que nunca é prejudicada pelas várias mãos que tocam no texto. Merece especial destaque o texto de Håkon Harket intitulado “Dinamarca e Noruega: a chegada dos Judeus ao Reino” (pp. 215 e ss.), um estudo sobre o impacto do anti-semitismo no espaço geográfico dos autores. Refira-se, não obstante, que mesmo assim esta obra fica um pouco aquém, por exemplo, de uma das obras de referência nesta temática, a “História do Anti-Semitismo” de Léon Poliakov, da qual é possível encontrar, traduzido para português, o volume respeitante aos anos 1945-1993 (Instituto Piaget, 1997).
Diferentemente, na vertente interpretativa, isto é, na análise das causas e efeitos – principalmente dos efeitos culturais e políticos – do anti-semitismo, a “História do Anti-Semitismo” fica algo aquém da expectativa despertada no prefácio, relativamente à interpretação desse mundo sombrio das relações históricas com o «outro». A este propósito, é útil chamar atenção para algumas passagens do “Tratado Teológico-Político” de Espinosa, que Trond Berg Eriksen apenas refere de passagem, nas quais o filósofo caracteriza o ódio relativamente aos judeus como factor de unificação e, curiosamente, de identidade da própria comunidade judaica na sua afirmação identitária. A história do anti-semitismo é, também, uma história da alteridade, uma história da inimizade. E a inimizade tem efeitos políticos fortíssimos que o discurso contemporâneo, artificialmente neutralizado nessa dimensão, raramente se atreve a reconhecer.
Na altura de explicar o papel da perseguição aos judeus, da aposição a estes da tenebrosa figura do “judeu errante”, nenhum dos autores desta obra chega o suficientemente longe: o anti-semitismo não compôs apenas um retrato demonizado do judeu que até a nossa linguagem corrente, sabe-se lá vindo de onde, preserva – basta pensarmos no significado do verbo judiar. O anti-semitismo compôs também a identidade dos próprios judeus e, por mais estranho que isso pareça, compôs a identidade do ocidente não-judaico naquilo que, na oposição aos judeus, este projectava de si próprio. Com efeito, paradoxalmente, foi um “ódio a si próprio”, ao conceito de Humanismo e à raiz judaico-cristã do pensamento ocidental, que presidiu ao objectivo de extermínio sistemático da Judiaria europeia pelo III Reich.
4 estrelas *Texto publicado no Ípsilon de 1 de Abril
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