[Texto de David Teles Pereira, publicado no Ípsilon de 22 de Abril]
Devemos ser menos exigentes com a construção de um livro de poemas escolhidos e condescender como nunca o faríamos caso se tratasse de um livro individualmente considerado? Diga-se, já à partida, que não.
Quando Stéphane Mallarmé, em carta a Paul Verlaine, fala de “um livro que seja um livro, arquitectural e premeditado, e não uma colectânea de inspirações de acaso”, não esboçou uma enunciação que pesa apenas sobre a cabeça do poeta, mas, também, sobre a do antologiador, mais ainda – e com acrescida responsabilidade –, quando é o próprio poeta a desempenhar essa função, como sucede em “Desobediência” (D. Quixote, 2011). E não devemos ser condescendentes a este propósito, principalmente, quando no seu trabalho de selecção o poeta decide substituir a sua Obra por uma obra, como Eduardo Pitta deixa bem claro na nota de abertura do livro ao declarar como “definitiva a presente fixação de texto e excluídos da obra os poemas que o autor deixou de fora”, num gesto que não pode surpreender qualquer leitor de poesia, especialmente de poesia portuguesa, tão frequente ele tem sido.
“Desobediência” reúne num só volume, definitivo e excludente, a obra poética de Eduardo Pitta, publicada entre 1971 e 1996, composta agora por sete livros amputados em relação ao seu original, e dois poemas em prosa que terminam a parte de poesia deste livro. A obra escolhida de um poeta, para ter outro mérito que ultrapasse a mera republicação de textos que eventualmente poderiam estar arredados dos leitores, deve oferecer a mesma estrutura “arquitectural e premeditada” que se exige a cada livro de poemas que pretende ser algo mais que uma simples recolha de poemas escritos entre este e aquele ano. Este ponto de partida, dentro do qual Eduardo Pitta claramente se coloca – é sempre bom repeti-lo – permite-nos exigir à construção de “Desobediência” dois trabalhos essenciais: coerência e ritmo.
Relativamente ao primeiro aspecto, apenas cumpre destacar a coesão temática deste livro. A maioria dos seus poemas procura construir, através de um roteiro de impressões, a sua vivência pessoal, quase sempre em poemas de amor ou sobre o amor, na impossibilidade ou falibilidade da sua expressão, tanto através do corpo como através das palavras: “Queria que ficasses/ naquele olhar/ a caminho da curva/ do meu ombro.” (p. 35) ou “Ficamos de pedra/ logo no acto de nascer./ – tropeçamos no limiar/ da palavra” (p. 51). Nestes meandros, a tentativa de acesso à lição de Eugénio de Andrade é um traço marcante na poesia de Eduardo Pitta, tal como o é a aproximação a alguma poesia anglo-saxónica ou a alguns poetas de língua portuguesa mais próximos desta cultura, como Rui Knopfli ou João Miguel Fernandes Jorge.
É em poemas curtos, como estes que se acabaram de citar, que se encontra o melhor que “Desobediência” tem para oferecer ao leitor. Mas são também estes poemas, ao mesmo tempo, que expressam, em sintoma, uma das maiores incapacidades desta poesia: dar o salto, prosódica e retoricamente, para poemas mais longos que os quatro ou cinco versos onde, por vezes, consegue encapsular as suas imagens mais atraentes. E mesmo nestes poemas, muitas vezes pouco mais se entrevê que o efeito vibrante da sua impressão, dando ao trabalho de depuração ou desornamentação uma dimensão na fronteira do artificial, quase como se fosse uma veia em que corre sangue porque uma máquina o empurra, mas onde não bate qualquer coração.
Há, noutra perspectiva, algo de importante a reter a propósito da economia discursiva que parece levar tantos poetas ao erro: ela não vale só por si, nem tão pouco vale apenas por ser deliberada. Um aríete pequeno e menos ornamentado que não consegue derrubar a mesma porta que um aríete maior e mais elaborado, não é outra coisa que uma insuficiência. A eficiência, transpondo para o domínio deste livro, seria demonstrada, por exemplo, através de um domínio irrepreensível dos recursos da linguagem. Acontece, porém, que esse trabalho é muitas vezes perturbado nesta poesia: aliterações mal executadas [“ontem choveu chuva cinza”, “e a volúpia volatiza-se” (ambos p. 32) ou “Verde de excessos/ excedidos e excessivos, em Poros.” (p. 90)]; imagens gastas ou banais [“silêncio de paredes/ brancas e esquecidas” (p. 100)]; paradoxos muito pouco exigentes [“Audível/ o silêncio pressagia/ naufrágios” (p. 70) ou “Tamanho ímpeto de silêncio/ fazia imenso barulho” (p. 153)]. Quase parece que a impossibilidade de expressão última da linguagem, tão cara a alguns poemas de Eduardo Pitta, é, afinal de contas, algumas vezes, apenas uma incapacidade da linguagem do poeta. Por outro lado, mesmo quando o domínio estilístico do poeta surge em melhor forma, os versos esbarram em enunciações inconsequentes ou postiças: “Deixara em Edinburgh três irmãs,/ solteironas todas, e todas, como ela, enfermeiras/ no front norte-africano, sob Montgomery./ Retornava a York, aigrette na capeline/ e um fundado desprezo pelo nosso Observer.” (p. 105).
Relativamente à possibilidade de leitura sequencial deste “Desobediência” – que atrás se procurou sintetizar na ideia de ritmo –, há que concluir que a execução final deixa o seu propósito absolutamente desamparado e, logo, de duas formas diferentes: por um lado, cada parte destes poemas escolhidos, a que anteriormente correspondia um livro, não sobrevive intacta aos cortes, perdendo por completo a sua unidade; por outro lado, este sacrifício é absolutamente inglório porque, no cômputo geral, não é feito em favor de uma possibilidade de leitura unitária de “Desobediência”, sequência ou demasiado lacunar ou, então, demasiado sujeita a sobressaltos no seu ritmo. Quando Eduardo Pitta declara como definitiva a fixação destes poemas e da sua sequência, não pode, depois, excluir-se da responsabilidade que isso acarreta e esta não era outra que construir, verdadeiramente, uma possibilidade de leitura para esta sua obra e não apenas limitar-se a juntar uns poemas e tirar outros.
Uma última referência deve deter-se sobre uma opção de inclusão nesta obra que, apesar de não ser inédita, nem por isso se justifica melhor. A parte final de “Desobediência”, a que Eduardo Pitta dá o nome de “Marginália crítica seleccionada” (pp. 201 e ss.), é composta por excertos de críticas ou recensões a livros deste autor, quase sempre num sentido elogioso. Não seria de estranhar tal inclusão caso este livro fosse responsabilidade de outra pessoa que não o próprio poeta e, com tal, pretendesse, de certa forma, legitimar o seu trabalho. Não seria também de estranhar que esta sequência de textos surgisse num blogue ou num sítio do autor, como aliás acontece (consulte-se o sítio: www.eduardopitta.com). Não sendo este o caso, qualquer das interpretações possíveis para esta decisão pouco abonam a favor do poeta: ou Eduardo Pitta acha que tem legitimidade para exercer sobre a crítica que a ele se dirigiu a mesma selecção que exerceu sobre os seus poemas; ou trata-se de um mero exercício auto-congratulatório pouco compreensível em alguém que exerce, ao mesmo tempo, actividade enquanto crítico literário.
Fica-se, por tudo o que se disse, com uma convicção: a próxima edição de “Desobediência” muito provavelmente não acrescentará à sua marginália crítica seleccionada este texto que agora acaba.
Nota: duas estrelas e meia.
sexta-feira, abril 22, 2011
Desobediência – Eduardo Pitta
Separador:
leituras,
textos do ípsilon
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário