sexta-feira, março 04, 2011

Uma guerra como nenhuma outra*

Cerca de vinte anos antes de ter publicado o seu Leviatã, Thomas Hobbes traduziu para inglês um dos colossos da cultura ateniense, a História da Guerra do Peloponeso de Tucídides (460-399 a.C.). Apresentando a obra, Hobbes escreveu, com alguma polémica, que Tucídides é o mais político dos historiadores.
Não pode surpreender-nos este epíteto com que o pensador inglês celebrou Tucídides: a análise da natureza humana e das suas motivações primordiais, que prepara a edificação do Leviatã hobbesiano, descobre inúmeros exemplos nas páginas da História da Guerra do Peloponeso. O pessimismo antropológico que marca grande parte do pensamento de Hobbes certamente encontrou alicerces seguros no cepticismo com que Tucídides encara a preeminência de princípios éticos nas atitudes humanas. Veja-se, por exemplo, aquilo que Tucídides põe na boca dos atenienses no seu diálogo com os Lacedemónios: “De facto nada há de extraordinário nem contrário à natureza humana em fazermos aquilo que fizemos, ao conservarmos um império que nos era oferecido e recusarmo-nos a abandoná-lo, submetidos que estávamos a motivos de enorme peso, como a honra, o receio e o interesse.” (p. 121). Agora compare-se com aquilo que Hobbes escreve no capítulo XIII do seu Leviatã: “De modo que na natureza humana encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória.”.
Estas características tornaram Tucídides um autor clássico bastante atípico, tanto para os seus defensores como para os seus detractores, o que explica, em parte, o pouco destaque a que grande parte dos humanistas dos séculos XV e XVI – com algumas excepções, como Lorenzo Valla, tradutor para o latim da obra de Tucídides –, votaram o seu texto, contrastante com a notoriedade que Maquiavel ou os autores da época moderna lhe deram, num período de profundas transformações e mudança de paradigmas na teorização do político, propício como nenhum outro ao florescimento da perspectiva que Tucídides fazia incidir sobre as grandes questões políticas “que sempre aconteceram e acontecerão, enquanto a natureza do homem continuar a ser a mesma” (p. 317).
Outras interpretações para este singular epíteto, o qual ainda mantém em grande medida o seu vigor, podem ser procuradas. A História da Guerra do Peloponeso narra as origens e o desenrolar de um dos mais longos conflitos bélicos da história que opôs Atenas e os seus aliados à Liga do Peloponeso, liderada por Esparta. Trata-se, por isso, de um texto marcado, em algumas das suas mais memoráveis passagens, por profundas oposições, cuja relevância no campo do político é inegável: de um lado, uma potência marítima do Mediterrâneo Oriental, Atenas, do outro a cidade-estado de Esparta, uma potência militar essencialmente terrestre; de um lado, o totalitarismo dos Lacedemónios, do outro o espírito democrático ateniense, apesar de estes, como repara Raul Rosado Fernandes no prefácio a esta tradução, serem “imperialistas e mais do que autoritários nos territórios que dominavam” (p. 10). Pode-se citar, a este propósito, uma passagem do famoso “Diálogo dos Mélios” (pp. 507-517) peculiarmente ilustrativa da postura dos atenienses durante o conflito:
"Mélios – Dessa forma vós não permitis que ao sermos neutrais, sejamos vossos amigos em vez de inimigos, sem sermos aliados de nenhuma das partes?
Atenienses – Não é assim. A vossa hostilidade não nos fere tanto quanto a vossa amizade, porquanto esta será uma prova da nossa fraqueza frente aos que são nossos súbditos, enquanto o ódio é a prova do nosso poder.".
Uma vertente da teoria política ensina, com reminiscências da conceptualização de Carl von Clausewitz, que a guerra é a realização extrema da inimizade e, nessa medida, é a realização extrema do fenómeno político. Encarada nesta perspectiva, a visão cínica ou, melhor dito, realista que Tucídides oferece sobre o comportamento humano em tempo de guerra, capaz do mais heróico dos actos ou da mais vil traição ou barbárie, coloca a História da Guerra do Peloponeso num lugar de relevo entre as reflexões histórico-políticas, a par das Histórias Florentinas de Maquiavel ou do Behemoth de Thomas Hobbes. Cite-se, por exemplo, o elogio fúnebre de Péricles àqueles que morreram em nome de “uma forma de governo que em nada se sente inferior às leis dos nossos vizinhos mas que, pelo contrário, é digna de ser imitada por eles” (p. 200) ou, no plano oposto, as barbaridades cometidas pelos Trácios que “saquearam as casas e os templos, assim como matavam as pessoas, não poupando nem velhos nem novos, mas matando todos de enfiada, onde quer que os encontrassem, matando até crianças e mulheres e mesmo bestas de carga e todos os seres viventes que porventura vissem” (pp. 623-624).

Esta edição recente da História da Guerra do Peloponeso vem suprir uma lacuna já antiga no estudo e divulgação desta obra em Portugal. O excepcional trabalho de Raul Rosado Fernandes e Gabriela Granwehr apresenta, pela primeira vez, este gigante da cultura clássica traduzido directamente do grego, numa edição que, além do texto propriamente dito, inclui um extenso prefácio assinado por Raul Rosado Fernandes, um índice onomástico satisfatoriamente completo e útil e vários mapas e figuras que auxiliam a compreensão, a localização espacial e a visualização de alguns dos elementos menos familiares aos leitores do texto. Merece especial destaque o prefácio, não só pelas pistas de leitura que oferece, mas também pela constante alusão a factos históricos, obras literárias e, até, obras cinematográficas cuja leitura comparada com a História da Guerra do Peloponeso confirma as palavras do próprio Tucídides quando este escreveu que a sua obra “não foi concebid[a] para ganhar prémios ao ser ouvid[a] de momento, mas como um legado para sempre.” (p. 82).
Num memorável poema intitulado, com bastante propriedade, “Porquê os Clássicos”, Zbigniew Herbert aborda um dos episódios da Guerra do Peloponeso mais marcantes para Tucídides, a tomada de Anfípolis por Brásidas. O historiador, na altura estratego, conta que estando em Tassos, a cerca de meio dia de distância de Anfípolis, acorreu de imediato ao pedido de auxílio por parte daqueles que resistiam no interior das muralhas ao exército de Brásidas, mas não conseguiu chegar à cidade a tempo de evitar a sua ocupação. Herbert escreve que “Tucídides diz apenas/ que tinha sete barcos/ que era Inverno/ e que navegou com celeridade”, pelo contrário, “os generais das guerras mais recentes/ se algo de semelhante lhes acontece/ choram de joelhos perante a posteridade/ e louvam o seu heroísmo e inocência”.
Um pouco à margem do efeito pretendido pelo poema, o episódio do Livro IV da História da Guerra do Peloponeso a que o poeta polaco alude, revela, como em muitos outros exemplos, um historiador dotado de um singular espírito crítico. Ao contrário de Heródoto, nascido cerca de trinta anos antes de Tucídides e que frequentemente abusava dos privilégios da ficção, como diria Edward Gibbon, há nas páginas da História da Guerra do Peloponeso uma preocupação diligente em destacar com clareza e objectividade as verdadeiras causas dos acontecimentos, procurando deixar sobre os factos um testemunho histórico-político suficientemente sólido e perene. Tucídides é, nesta linhagem da historiografia, o primeiro de todos os historiadores.

Tucídides, História da Guerra de Peloponeso, tradução de Raul Rosado Fernandes e Gabriela Granwehr, Fundação Calouste Gulbenkian, 2010
Nota: 5 estrelas


*Texto publicado no Ípsilon de 4 de Março de 2010

Sem comentários: