para o Jorge Fernandes da Silveira
Onde morou a Luiza.
Passei por ela, a rua, muitas vezes.
Chama-se agora "da Misericórdia"
e sabe de cor seu caminho
que desce à beira do rio
no alto de um ramo de alecrim,
como um Tejo miúdo, todo de pedras
e seu aluvião de pastelarias, alfarrabistas.
O cano que rebentou junto ao passeio,
sim, se calhar,
inda não foi consertado,
que as coisas são lentas.
Chama-se agora "da Misericórdia"
a antiga Rua do Mundo.
Era talvez pequena
para nome tão afastadamente,
para a Terra toda e os astros,
mas Luiza era um corpo celeste
a vigiar o andamento, o ruído,
o silêncio, o istmo,
as variações possíveis,
imprevistas, o sangue,
a asa, o sal inesgotável
do vário, o jogo.
Rua do mundo fora,
de seres que se queimavam à luz.
Rua do mundo sensível,
onde Luiza metia o nariz.
Abarcar o mundo com as pernas,
afundar no poema, cair
no mundo, ganhar mundos,
fundos nenhuns, perder.
Era uma rua qualquer, mas
a chuva sabia seu nome, bem como
os males irremediáveis, as ventanias,
os alvoroços de verão, os insetos.
Mesmo a felicidade tantas vezes
desceu e subiu tal qual uma vaga
desordenada, descalça, as pedras
daquela via sem reis nem padres.
Os sábados enchiam as calçadas de pernas.
Luiza ouvia o fragor. Os telhados ruíam.
Luiza ouvia os cacos, cada um.
A rua frágil, a palavra disparada.
Já não se chama "do Mundo".
É agora "Rua da Misericórdia".
Já não é a vastidão do orbe,
mas, de joelhos, ora pro nobis.
O sol vinha reto varar a janela
da louca que atravessara
a noite à procura do verso
mais irritado, mais de si.
Do punhal ali, rente aos olhos,
ao fígado, ao coração, a mulher sabia
que só uma palavra a salvaria:
misericórdia. Não pediria?
De longe, era possível ouvir um grito
(mas talvez fosse apenas eu) a pedir compaixão.
Mas era menos para ela que para o mundo,
menos para ela que para a rua do.
- Eucanaã Ferraz
in Rua do mundo, Quasi
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