segunda-feira, março 14, 2011

Anti-corpos

O velho do Restelo agora escreve crónicas num blogue
e dá entrevistas à rádio a propósito de qualquer tema,
mesmo que seja o amor que nunca recebeu de uma mulher dez anos
mais nova e quarenta quilos mais magra.

David Teles Pereira

Esta água-choca já tem imagem de marca, é engarrafada e dada a beber como se extraída à pia baptismal da poesia, e vai vendendo o exemplo da mediocridade como uma opção estratégica, revoltosa. Vem um padreca de circunstância, falar em nome de deuses sem elevação nem ocupação, organiza um culto dos mortos à revelia das vidas que levaram e do exemplo que deixaram, anuncia greves de fome, distribui cartazes entre alheados e turistas, com frases e noções subtraídas ao seu contexto, veste o ressentimento de protesto, fala em ruptura, na importância de cortar com o passado, e atira muitas pedras a muitas janelas. No elástico à volta destas, seguem desamparadas muitas das palavras que temos como sérias, ali em jeito de bocejo.
Chega tarde e cheio de pretensões, como quem liga a televisão e apanha a meio o episódio da novela. Põe-se a defecar nos quintais, diz que é a sua opinião, como se uma opinião muitas vezes não fedesse mais e não pudesse ser uma agressão maior aos sentidos do que verdadeiras excreções físicas.
Num meio condenado ao silêncio por serem tão poucos aqueles que podem levantar a voz com alguma propriedade e estabelecer um juízo sério relativamente a qualquer esforço poético, individual ou colectivo, fingir que não se entende como pode tornar-se desagradável e, sobretudo, desmotivador que a primeira voz a levantar-se venha bradar levianamente pela falta de perspectiva e validade de qualquer empresa é de uma inconsciência imperdoável. Há nisto tudo uma dose incrível de desconsideração, uma cegueira e uma desonestidade intelectual que assusta quando se verifica que se tornou bitola para uma série de pessoas que continuam a falar de uma (sua) paixão frustrada. Mas o que é isso?
O desafio mais imediato das iniciativas poéticas dos nossos dias, mais ainda do que a dificuldade de encontrarem uma massa crítica de leitores, é superar esta operação de descrédito da parte destas casas de velhos (e reformados) do Restelo, que se servem de quaisquer ruínas históricas da lógica e do pensamento para alimentar a ideia de que vivemos num ambiente criativo frouxo, e assim nutrir apenas o sentimento de que tudo é apenas um mesmo mal que se multiplica.
O que é dito no editorial da revista Agio e ali é subtraído à sua função e instrumentalizado a favor do grande bolo de desentendimentos que essa garganta cresce, é que o novo pelo novo não apresenta por si um desafio ou sequer um valor afirmante. Procurar a ruptura a todos os custos é uma facilidade discursiva e uma opção que se pode tornar um castigo sacrificando a poesia a favor de experiências sem qualquer espírito de investigação, e só alicerçadas nesse breve entusiasmo que leva um miúdo a fechar-se, entre químicos que não domina, num laboratório. Os próprios versos de quem profere estas urgências confirmam que está longe de arriscar uma direcção nova, antes se perde em círculos, revelando tantos dos tiques associados muitas das vezes à mais cansada das noções de poesia. No fundo, e depois de toda a vozearia e barulheira gerada, sempre que metemos o pé nestas águas apenas confirmamos que não têm profundidade, não escondem nada nem levam para lugar algum. No máximo, ali, podem juntar-se uns desconsolados e chapinhar à toa, cansando-se em frente ao espelho e debaixo da excessiva maquilhagem das indignaçõezinhas que afixam a cada dia.
São os do costume, como já os havia no século XIV e antes, mas hoje nem precisam de sair à rua e enfrentar o ânimo daqueles que interpelam. Têm blogues e opiniões, muitas. Mas não percebem que a ruptura (se é verdadeira) surge quando para continuar e levar em frente se torna necessário vencer uma resistência imposta pelo hábito que se gerou na maioria, levando a crer que a poesia de algum modo pode estar mais apegada a uma tendência, e os livros de poesia mais aparentam manuais de etiqueta existencial. Mais apegada a um âmbito restrito e restritivo do que à necessidade de se empenhar na urgência da sua revelação, desabrochando perpetuamente, uma flor que cheira os tempos e se vai despetalando através deles, só por instantes sendo surpreendida, deixando a descoberto o coração. E logo que o revela imediatamente se defende, revestindo-o de uma nova camada de pétalas. Sensibilidade é isto, e a poesia é uma arte de precisão. Dispensa bem estas ansiedades egoísticas camufladas de boas intenções.

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