We look at the world once, in childhood.
The rest is memory.
Louise Glück
Solitário
como uma civilização extinta,
sou o que resta e o que ficou aqui
a aguar o tempo, amolecê-lo
no silencioso desmoronamento
em amargos países como este,
onde tudo nos leva
à invenção do exílio, esse grito degolado.
A ideia em seu peso inconstante, enjoativa,
ecos sempre mais surdos
nestas páginas já sem margens.
E como entre elas cada um de nós
risca todos os outros ou juntos
somos enfim devorados
pelas nossas próprias imagens.
A manhã com as suas nuvens
rastejando e as ruas mergulhadas
num ardor meditativo,
envolvido por esta luz de fim de mundo.
O borrão dos pássaros que não souberam
escapar-lhe, simples nódoas. Cai um
e outro a seguir,
uma chuvada deles. Às sombras,
deixo-as vir, fazendo destas mãos
um ninho. Entre o bocejo e o abandono,
este fluxo, esta náusea que se ergue
roçando arestas vivas, estilhaços
que me pedem as mãos. Tudo isto
que me arruína o sangue
e alimenta tremores,
murmúrios debaixo da pele.
Na escura água deste baptismo,
crianças como astros arremessados
de infâncias miseráveis, seu ímpeto
negro: os nomes tristes
que dão às coisas
arrastando-as para o seu mundo,
seus jogos cruéis e estratégias de intimidação,
e como depois de uma frase aterradora,
algumas engolem a própria língua,
outras cospem-na tão longe
e enfim esvaem-se silenciosamente
numa abstinência atroz.
Como de uma pele envelhecida,
a cidade desfaz-se de nós
e segue, arrasta-se sobre as suas
escamas de vidro, vultos
despedaçados, engates entre reflexos,
este cerco infernal.
Cartomantes e videntes, traficantes
de tudo. A mesma noite há anos.
E volto a deixar-me cair sem resistência,
cair noutros olhos, deixar que me cante
essa voz de sombra, coberta de musgo,
soprando a luz, animando os contornos
deste pesadelo de ossos e músculo
prestes a tornar-se em algo
simplesmente sujo e aborrecido.
No fim, a inútil metamorfose
de que ainda nos servimos
neste apartamento obscuro e comovido.
Por todo o lado pedacinhos de unhas.
Às vezes gato, outras cão ou anjo,
passa as noites esgaravatando o soalho,
escavando o seu pequeno abismo.
A cama exausta
envolvida pelo odor macio
de putrefacção, o sexo que ali deixei
como uma página arrancada
e o choro da pequena flor negra
à cabeceira, como se um último suspiro
rasgando a memória, aninhando-se
nesse pescoço fácil.
De uma boca a outra o ar
como uma música gelada, e esta dor
que nos partilha quando de novo encaixamos
a derradeira peça neste puzzle grotesco.
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