quinta-feira, fevereiro 03, 2011

PAISAGEM DA MULTIDÃO QUE URINA
(NOCTURNO DE BATTERY PLACE)

Eles ficaram sós:
esperavam a velocidade das últimas bicicletas.
Elas ficaram sós:
aguardavam a morte de uma criança no veleiro japonês.
Eles, elas, ficaram sós,
a sonhar com os bicos que os pássaros abrem na agonia,
com o guarda-sol agudo que fura
o sapo esmagado ainda há pouco,
sob um silêncio de mil orelhas,
e bocas de água diminutas
nos desfiladeiros que resistem
ao feroz ataque da lua.
Chorava, a criança do veleiro, e os corações partiram-se
angustiados pelo testemunho e a vigília de todas as coisas
e porque assim mesmo nomes escuros gritavam
no chão celeste de negras pegadas,
gritavam salivas e rádios de níquel.
Não importa se a criança deixa de chorar quando lhe espetam o último alfinete,
nem a derrota da brisa na corola do algodão,
pois há um mundo da morte com definitivos marinheiros
que hão-de subir aos arcos e congelá-los por detrás das árvores.
É inútil procurar o cotovelo
onde a noite se esquece da viagem
e espreitar um silêncio que não tenha
fatos rotos e cascas e pranto,
pois basta o banquete da aranha, minúsculo,
para desfazer o equilíbrio de todo o céu.
Para o gemido do veleiro Japonês não há remédio,
nem para esta gente oculta que tropeça nas esquinas.
Para unir as raízes num só ponto o campo morde o seu próprio rabo
e o novelo vai procurar na erva a sua ânsia insatisfeita de longitude.
A lua! Os polícias! As sereias dos transatlânticos!
Semblante de crina, de fumo; anémonas e luvas de borracha.
Tudo está roto nesta noite
aberta de pernas em cima dos terraços.
Tudo está roto por esses canos mornos
de uma terrível e silenciosa fonte.
Ó gente! Ó mulherzinhas! ó soldados!
Temos de viajar nos olhos dos idiotas,
campos livres onde silvam mansas cobras deslumbradas,
paisagens cheias de sepulcros que produzem maçãs fresquíssimas,
para nos chegar a exorbitante luz
que os ricos temem por detrás das suas lupas,
o cheiro de um só corpo com vertente dupla de lírio e rata,
e queimar-se então esta gente que pode urinar à volta de um gemido
ou nos cristais que explicam as ondas nunca repetidas.

- Federico García Lorca
(tradução de Aníbal Fernandes)

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