segunda-feira, fevereiro 14, 2011

A Barca da Morte

I

Agora é o Outono, o cair dos frutos
e a longa viagem para o esquecimento.

As maçãs que caem como grandes gotas de orvalho
Conseguem ferir uma saída de si próprias.

É tempo de ir, do adeus
ao próprio eu, de encontrar uma saída
do eu caído.


II

Já construíste a tua barca da morte, a tua?.
Constrói a tua barca da morte, vais precisar dela.

Não tarda a geada impiedosa, e cairão as maçãs
pesadas, quase retumbantes, na terra ressequida.

E, no ar, a morte como um cheiro de cinzas!
Não a sentes?

E no corpo ferido, a alma assustada
fica encolhida, contraíndo-se do frio
que sopra sobre ela pelos orifícios.


III

E consegue um homem a sua quietude
com um punhal nu?

Com adagas, punhais, balas, um homem consegue
uma fenda ou ferida para sair a vida;
mas é isso a quietude, diz-me, a quietude?

Claro que não! como pode um crime, mesmo contra si
criar quietude?


IV

Falemos de quietudes que conhecemos,
das que podemos conhecer, de profundas e ternas quietudes
num coração forte e em paz!

Como tornar, isto em quietude nossa?


V

Constrói, pois, a barca da morte, que vais partir
na mais longa viagem, para o esquecimento.

E morre a morte, a longa e dolorida morte
que fica entre o velho e o novo eu.

Caíram-nos já, feridos, rasgados, os corpos,
esvaem-se-nos já as almas pela saída
dessa cruel ferida.

O oceano sombrio, infindável, do fim
espraia-se já pelas nossas rebentadas chagas,
abate-se já sobre nós o dilúvio.

Constrói a tua barca da morte, a tua pequena arca
abastece-a com comida biscoitos e vinho,
para o obscuro voo no esquecimento.


VI

Pouco a pouco o corpo morre, e a alma tímida
vê o suporte levado no erguer do negro dilúvio.

Morrendo, estamos morrendo, estamos todos morrendo
e nada deterá o dilúvio de morte que cresce em nós
e não tarda a erguer-se sobre o mundo, sobre o mundo exterior.

Morrendo, estamos morrendo, pouco a pouco morrendo
e abandona-nos o ânimo,
e abriga-se a alma nua na chuva negra sobre o dilúvio
abrigando-se nos últimos ramos da árvore da nossa vida.


VII

Morrendo, estamos morrendo, agora só nos resta
aceitar a morte, e construir a barca
da morte que nos leve a alma na mais longa viagem.

Uma pequena barca, com remos e comida
e pequenos pratos, e todo o apetrechamento
pronto e necessário à alma de partida.

Agora, lança à água a pequena barca, agora, que o corpo morre
e a vida parte, lança a alma frágil
na frágil barca da coragem, na arca da fé,
com os mantimentos, as pequenas caçarolas
e as mudas de roupa;
no negro deserto do dilúvio
nas águas do fim
no mar da morte, onde navegamos ainda,
às escuras, porque não temos leme nem existe porto.

Não há porto, nenhum sítio para onde ir
apenas o negrume que se aprofunda e escurece mais,
mais negro sobre o dilúvio silencioso e inagitado
escuridão após escuridão, para cima e para baixo
e pelos lados absoluta escuridão, já não pode haver direção.
E a pequena barca está lá, e contudo partiu.
Não pode ser vista, porque nada o permite.
Desapareceu! partiu! e contudo está
em algum lado.
Em lado algum!


VIII

E tudo partiu, o corpo partiu
submerso, desaparecido, inteiramente desaparecido.
A escuridão de cima é tão densa como a de baixo,
por entre elas a pequena barca
partiu
desapareceu.

É o fim, é o esquecimento.


IX

E, contudo, da eternidade separa-se
um filamento sobre o negrume,
um filamento horizontal
que se eleva palidamente sobre o escuro.

Será ilusão ou eleva-se essa palidez
um pouco mais alto?
Mas espera, espera, porque há a madrugada,
a madrugada cruel do regresso à vida
após o esquecimento.

Espera, espera, a pequena barca
à deriva, debaixo do cinzento mortal das cinzas
duma madrugada de dilúvio.

Espera, espera! mesmo assim uma réstea de amarelo
e, por estranho, alma cansada e fria, uma réstea de rosa.

Uma réstea de rosa, e tudo isto recomeça.


X

Desde o dilúvio, e o corpo, como uma concha polida
emerge extraordinário e belo.
E a pequena barca torna a casa, deslizando, trêmula,
100 sobre as águas do dilúvio róseo,
e a frágil alma desembarca, volta a casa
enchendo de paz o coração.

O coração renovado embala-se na paz,
mesmo na do próprio esquecimento .

Constrói a tua barca da morte, a tua!
vais precisar dela.
Espera-te a viagem do esquecimento.

- D.H. Lawrence
(tradução de Rui Rosado)
in A Barca da Morte, Hiena

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