A reedição (longamente aguardada, e de premência inegável) de Uma Antologia de Poesia Chinesa – impressionante trabalho de recolha, tradução e anotação de Gil de Carvalho – actualiza e amplia decisivamente a sua primeira edição, de 1989. São agora cerca de cem, os poetas antologiados, a que se juntam dezenas de poemas anónimos – face às cerca de três dezenas de autores traduzidos na anterior versão. Se há vinte anos o último autor representado pertencia ao século XVII, na sua actual forma a antologia estende-se ao século XX. Para citar apenas um caso, Tu Fu (ou Du Fu) – conforme lembra G. de Carvalho, o maior poeta chinês: na sua concisa fórmula, «toda a poesia chinesa» (p.400) –, os quatro poemas com que surgia representado dão lugar a onze composições. Um poeta «incomparável» (cf. A Dama Luminosa e Outros Escritos da China), a quem convém aproximar Li Bai (criador inovador da poesia chinesa, ‘inventor’ «do sujeito “romântico” teatral e contemporâneo» (id.) da sua própria biografia transfigurada pelo poema), outro lídimo representante do luminoso período Tang.
Começando com o Shijing – a colectânea, cuja organização é atribuída a Confúcio (que conferia o estatuto de canónicas e clássicas às composições coligidas), que recolhia poemas datáveis do século XI a VII a.C. –, cria um arco temporal que a traz até ao século passado. Imagem poderosa e amplamente representativa de uma poesia – uma literatura – em cuja raiz estará uma «intuição divinatória e ritos – voltados para o corpo social, que se acompanhavam do gesto (grafado?) de dança e música» (cf. A Dama Luminosa…), e que surge «de uma língua escrita cedo fixada (que embora conhecendo mudanças se mantém una), mas que se “divide” por poesia monografia, tratado astronómico» (id).
Num conjunto a todos os títulos modelar, Gil de Carvalho rastreia uma poesia de tradição milenar em que avulta uma arte regida pela «medida justa» (p.7). Esta antologia realiza um percurso de sólida construção por uma produção artística que é o resultado notável da «civilização que mais lugar deu à poesia, o que quer que esta seja lá» (p.12). Um contexto cultural em que o «poema – e alguma prosa clássica – é o monumento mais durável», que originou uma poesia que é «materialista, mas deixa de fora um certo “visível”.» (p.8) Gil de Carvalho foge da bravata e, pela sua lhaneza, ascende a uma assinalável honestidade de digno registo – «Conheço somente os rudimentos da chamada língua chinesa clássica. O que fiz, e a que posso chamar decifração e sua realização num poema, foi usar trabalhos ocidentais, e, o mais possível, chineses, quando acessíveis em línguas nossas.» (pp.9-10) –, que o afasta da literatice, de qualquer tom minimamente professoral.
Uma Antologia de Poesia Chinesa recolhe espécimes exímios de uma arte apurada e metamorfoseada subtilmente ao longo dos séculos. Exemplos notabilíssimos de um fazer despojado da subjectividade, do exaltamento, da dicção carregada de camadas de sentidos que associamos geralmente à arte dos versos. Uma poesia que contrapõe ao subjectivo uma abordagem directa e despida das coisas, do acontecer – «Na Cidade de Wei, a chuva matutina/ Fez assentar a poeira leve do ar./ Tudo está verde na estalagem» (p.135, Wang Wei). Uma florescência integrada numa «Literatura quase toda ela política, pública, sem vergonha de o ser – e só muito tardiamente tratando dos interiores e da “alma”.» (A Dama Luminosa…) Um entendimento do poético, no entanto, capaz de transposições de sentido – «Diante da cama/ Brilha o luar/ Que mais parece/ Gelo no chão.» (p.153, Li Bai, representado com dez poemas, face aos três da edição anterior) – que a tornam uma realização admirável.
Na sua abordagem obliquamente subliminar, sempre cautelosa, «“à chinesa”» (conforme G.C. diz a respeito das indicações da bibliografia), como num poema, Gil de Carvalho nunca se mostra sapiente (embora o seja), nem pretende ter a chave para o eventual segredo desta poesia, ou de outra. É apenas alguém que partilha um entre vários caminhos com leitores ocidentais eventualmente não iniciados – «tentei fazer para um certo poema chinês um outro mais ou menos capaz ou “fidedigno” em português» (p.10). O labor que leva a cabo ao intentá-lo é notável.
- Hugo Pinto Santos
[versão ampliada de um texto publicado no «Atual», Expresso, 15 de Janeiro, 2011]
sábado, janeiro 15, 2011
Uma Antologia de Poesia Chinesa, Gil de Carvalho (2010)
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