Neste espaço de água nasce a luz
ou nele a luz se perde vinda donde
os olhos batem: umas casas, a tarde.
Madeiras, algas, penas arrancadas
boiam pelo mar até aos ombros
na neblina quase pedra a pedra
parecem mãos paralisadas.
Da terra subindo dentre a água
o espelho das coisas traz a força escura
de cada corpo para cada corpo
vês à beira do mar com a lua subindo
os reflexos, nascem de montes densos
até ao fumo indizível chamado ao céu.
O ar corre sobre as árvores que
te ensinei eu? Na muita luz parando
sobre os muros a móvel visão es
cura dá sobre campos de feno recolhido.
Vou responder olha ainda duas ou três
marcas de sal no chão tão seco
as árvores parecem parar mais o
teu corpo imóvel parece caminhar
quero dar-lhe uma errante vida
retida pelas pedras estas bermas
donde me debruço como ramos mortos
não há nenhum vento ouve bem
vou dizer-te as giestas brilham
mais de noite aos faróis dos carros
do que neste sol também tu e eu.
O que te ensinei estou a ensinar-to.
Movo as mãos o corpo alguém espreita
é tão terrível eu digo para ti o que não sei
tu tens razão, descrê
hoje é que voltei sem
saber porquê, eu sei que é difícil
coisas a levarem estes cardos, não tem
mal, é tudo igual ao que ensinei.
Até jeitos do corpo copiei de ti, eu não
queria a tarde chega pelos vidros, o veneno
do rosto abre uma pequena fenda, o maior abismo.
O amante, o amado fazem-
-se o mesmo, não, amar é separar.
Por mais longe que um homem ande
quem o amou anda com ele, não,
o que nós somos tem este terror
e os anos pelo meio? as outras
horas que outros nos devoram?
Já não é o mesmo, a separação, o amor, não
a primeira tarde foi a última foi
depois desta, olha o coração como vai
por estas verdades aprendido, futuro, uma
vez só que seja, deixa-me eu tocar-te,
eu escondo a cara, eu não digo nada,
eu digo-te devagar uma história para tu
dormires, eu vou já contigo tomar
uma bica, uma cerveja, o que tu quiseres.
Há coisas de mim que nunca te contei.
Duvido que tuas mãos se façam cinza
ao tocarem num corpo, as minhas fazem.
Vês como ardem e se vão embora esquecidas
para outra escolha? A rir-se, se quiseres.
As pernas batem no sobrado
hesitam entre esgares
mordo os teus pulsos um jeito mais
de condenar-me como o outro
na coisa amada, boca a encontrar
romper por outra boca luz tão
escura que só os dedos vêem.
Profetizo contra mim próprio,
só o futuro é, escuta, lendário
sem dúvida a primavera chegou.
Vem o vento de longe levantar poeiras,
o esterco da terra sobre pedregosos
caminhos de água seca.
Aperto tua mão desfigurado
num rosto branco de desejo. Vou
contigo, vou-me embora, ainda a chuva
há-de fazer mentir a minha voz.
- Joaquim Manuel Magalhães
in António Palolo, Na Regra do Jogo
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