segunda-feira, janeiro 17, 2011

Lisboa –
Janeiro de dois mil e onze –, este
teu céu e dos meses frios parece
embriagar as aves derramando-se
lentamente. A vagarosa luz de tanque
morto devolve-nos o rosto
em cada um dos teus recantos de cansaço
e ângulos feridos onde ainda me acho
acumulando resíduos de uma idade
fabulosa. Os teus náufragos
à superfície destes jardins ácidos
de sombras, sombras que afiam o bico
nas lápides e os espiam, distraídos:
o olhar nesse gozo de ir pelo abandono
sob a asa do fim da tarde.

Cidade entre todas irreal, teu colo
firme resiste, sismo a sismo,
enquanto o sono nos inclina, e vagueio
como por um triste sonho de que
me cansei de acordar. Caminhos
onde teimam flores obscenas, pequenas
flores nauseabundas entre as raízes da chuva
e surdos sons, sorvendo essa luz esquecida
de que sobra um resto e vem separar-me
duas pulsações.

Nos teus cafés ardem, calmos, bebedores
de silêncio / emigrados doutros mundos,
sentados a estas mesas endoidecidas
onde entalharam pássaros, breves
compêndios e rotas que nos levaram
tão longe só para te sentirmos a falta.

Velhos rádios louvam sem descanso
a tua memória, ruínas de melodias,
notas que nos enchem o sangue, a voz,
só sublinhando este terrível encanto,
ecos e presenças deste teu belíssimo
mosaico d’escombros.
Tão perto das palavras, esse frágil
pulso: versos brancos à espera
de tudo. Ânsias, um bater d’asas,
algo que acenda o rastilho destas febres
etílicas, azias geniais.
Um puto desses de que mais gostas
tem uma navalha nas mãos e risca
casulos, retira-lhes a larva que aguardava
a beatitude do voo, e atravessa-as num fio,
ensinando-nos mais qualquer coisa
sobre isso da desilusão.

Vejo coisas, vejo-as mexer pelas tuas ruas
nestes ritmos de súplica, a doce humilhação
de figuras devorando-se umas nas outras
como em espelhos. A menina e moça,
está um pouco velha, mas o seu corpo
ainda é doce, uma leitura demorada
que chega e só fala a estranhos,
ou cala-se, cerra os olhos e, quieta,
parece dançar sozinha. Rara,
cada pequeno gesto quase histórico,
estende o seu fio de Ariadne entre
os teus bairros depredados. Este gosto
a declínio, a fim de império.
Esta hora em que todo o ocidente
receberá de um dos teus loucos
a extrema-unção.

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