segunda-feira, janeiro 24, 2011

Duas histórias modernas

Duas Histórias modernas
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I.

O tumor alastrou em forma de estrela, no interior do seio: Desde que cortaram o seio esquerdo a Maria, que Pedro era um ser incompleto, vazio por dentro, tinha caído no alcoolismo. Viviam os dois na rua dos caldeireiros no Porto, mas agora desde que Maria não podia trabalhar mais, tinham dificuldades em pagar a renda. Maria trabalhava numa fábrica de tecidos, responsável por um tear mecânico numa fábrica perto de Campanha, depois perdeu o emprego. Pedro vendia lotarias e jornais, um ardina moderno. Nesse tempo não se falava muito em tumores, mas a estrela gelatinosa e fluorescente já há muito que vinha crescendo no seio de Maria, até ao corte, o corte de uma mama. Esteve internada muito tempo, e ambos tiveram que pedir dinheiro emprestado a uns tios para pagar as despesas no hospital Santo António. Lembravam-se de tempos melhores, em que com uma herança de Pedro, foram a Barcelona e ouviram o pássaro de Fogo, de Stravinsky num teatro perto das Ramblas. O Pássaro de fogo que depois Pedro comprou para ouvir com Maria num gramofone que Maria tinha herdado. Quem passava pela rua dos caldeireiros, podia ouvir a música, e parecia que o pássaro de fogo entrava por todas as janelas, trazendo o cancro em forma de estrela e levando o cancro em forma de estrela. E o som das gaivotas que vinham da ribeira como que procurando a música, ou fugindo do mar e da literatura. Nunca conseguiram ter filhos, Pedro tinha trinta e dois anos, e Maria trinta e cinco – Na altura do corte. Stravinsky ainda não tinha morrido, o cinema mudo estava no auge. Pedro começou a beber, numa taberna da rua da Madeira, bebia antes do trabalho e nas pausas do trabalho, vinho tinto, e ouvia as histórias de taberna, mesmo ao lado da estação de São Bento, dos que entram na cidade, dos que partem ao fim do dia, ao fim do dia também estava Pedro na taberna e caiu fundo no álcool, facilitado na venda de cautelas e jornais, ia muitas vezes a casa ver Maria, deitada, beijava-lhe o seio, e o peito na falta do seio, lambia-o, os dois, com o Pássaro de fogo a tocar. A primeira guerra mundial tinha acabado há dois anos. Pedro tinha escapado porque tinha o pé raso. O cancro alastrava comendo o seio fluorescente por dentro, em tudo estrela maligna que Pedro beijava até à exaustão, chupava até à exaustão, até ao corte final.
Um dia na taberna na rua da Madeira ao lado da estação, encontrou-se com um escultor que tinha acabado de tirar Belas Artes, falaram durante muito tempo, Pedro estava bêbado, o escultor estava bêbado, falavam da primeira grande guerra, de Maria, conheciam-se há dois anos, apenas de conversar na taberna. A certa altura Pedro fica pensativo com o copo de vinho tinto na mão e o cigarro de enrolar na outra. O escultor observa-o com atenção e diz: Tu és o soldado desconhecido – Pedro não reflecte sequer: - TU és o soldado desconhecido – Depois explica-lhe, a câmara do Porto tinha lhe encomendado a escultura de um soldado desconhecido, memorial da primeira guerra, um soldado que representasse a valentia de todos os portugueses que nela participaram, que nela morreram ou ficaram mutilados, essa era a encomenda que ele tinha, e olhando para o perfil de Pedro, viu nele o modelo do soldado desconhecido, a cara de todos os que morreram em combate. Falou-lhe do projecto e disse para ele ir a casa dele, que lhe pagava porque ia receber uma prestação adiantada da Câmara, e pagava bem aos modelos. No dia seguinte combinaram encontrar-se na escola de Belas artes para falarem um pouco. Pedro foi até à estação de São Bento, ficou a ver os comboios que partiam, os comboios que chegavam carregados de pessoas a suar. Foi ter à escola de Belas Artes e o escultor deu-lhe para vestir um fato de infantaria, usado pelos soldados portugueses em França, deu-lhe também uma caçadeira, de cano longo, e fê-lo posar, Pedro viu-se ao espelho, tinha que ficar recto e sem se mexer dentro do fato e com a caçadeira apontada para o chão, o escultor começou a desenhá-lo. Nos dias seguintes as sessões foram em casa do escultor, Pedro posava com o fato e o escultor desenhava. O dinheiro dava-lhe jeito 1000 reis por sessão, como modelo, dava para continuar a pagar a renda mais algumas vezes, contou a Maria.
Meses mais tarde a estátua do soldado desconhecido estava pronta e era inaugurada na praça Carlos Alberto onde estava o Presidente da República e o presidente da Câmara do Porto. Maria também foi à cerimónia, extremamente pálida, morria um mês depois. Poucos dias antes tinha-a ido ver ao hospital, beijou-lhe o peito , lambeu-lhe o peito até ao sexo, lambeu-lhe o sexo, deu-lhe a mão, beijou-lhe a testa; depois saiu para trabalhar, urinou quase por impulso no elevador do hospital. Ia sozinho. A pessoa que entrou a seguir viu a mancha de urina e continuou a subir no elevador antigo de ferros, para ir ver o seu doente. Quando chegou a casa Pedro ligou o gramofone e dançou o pássaro de fogo até ao êxtase, deixou-se depois tombar sobre a cama. Sentiu no seu quarto completamente escuro a presença de Jorge Luís Borges, ainda por nascer, mas já cego, para voltar a ver e voltar a ficar cego. Acendeu as luzes e voltou a pôr a agulha no início do pássaro de fogo.



II


António já tinha estado internado, era esquizofrénico; nos anos cinquenta, a esquizofrenia só seria descoberta anos depois, nos Estados Unidos, em grandes catálogos de doenças psiquiátricas. Bebia muito e parava sempre numa taberna na rua da Madeira. Ao fim do dia sentava-se num banco da praça Carlos Alberto e ouvia o que o soldado desconhecido lhe dizia, via o soldado a falar, via-o sair da sua posição de bronze verde, paralítica, inerte, levantar os braços e vir sentar-se no seu banco, o soldado contava-lhe histórias das guerras futuras, discutiam o segredo de Fátima, em todas as suas variantes, às vezes o soldado acompanhava-o até à rua da Madeira e aí ficavam a beber vinho tinto. Outras vezes iam ver as gaivotas e passear pela Ribeira. O soldado falava-lhe da guerra da Coreia ainda por vir, da invasão do Afeganistão ainda por vir, da Guerra das Maldivas ainda por vir. Falava-lhe dos submarinos russos no fundo do mar negro, com os seus capitães embalsamados pelo susto e pelas águas paradas, falou-lhe de um capitão que levava dentro do seu submarino um gramofone com o pássaro de fogo a tocar, e de como as baleias se aproximavam. Aí os olhos dos dois soldados iluminavam-se e iluminavam todo o cerro.



III.

Jim Sawer vivia numa pequena cidade da Califórnia do Sul. Tinha criado há dez anos uma fábrica de produtos alimentares altamente especializada; os seus clientes eram estabelecimentos prisionais norte americanas e mexicanas que comprovam os seus produtos enlatados por serem altamente nutritivos e calóricos. Eram usados em reclusos que tentavam matar-se, não comendo, ou em reclusos que praticavam greve de fome. Os funcionários das cadeias e os enfermeiros metiam um funil (como aos gansos doentes) e alimentavam-nos à força, com a ajuda de dois guardas. Jim Sawer sabia que havia esse buraco, esse mercado a explorar no sistema prisional norte-americano e soube-o explorar bem. A sua música favorita era o pássaro de fogo, não gostava de ouvir falar de eutanásia, sofria de impotência e comprava viagra pela internet para ir ter com prostitutas, a sua mulher tinha morrido há vinte anos de cancro na mama. Não deixaram nenhum filho. Era muito perspicaz para todo o tipo de negócios.
Um dia um soldado entrou-lhe em casa em casa e falou-lhe de guerra, Jim colocou o “pássaro de fogo” na aparelhagem e ficaram a falar durante muito tempo: sobre botões, sobre dedos compridos, sobre guerras. Depois o soldado deu-lhe de beber gin tónico e ficaram a beber até tarde. Jim adormeceu, tinha uma reunião de negócios no dia seguinte que, se corresse bem, lhe abriria portas para o mercado de todos estabelecimentos prisionais de Seattle. Tinha que partir cedo para o aeroporto; Mas o soldado deu-lhe de beber e deu-lhe cogumelos. Jim teve várias alucinações, imaginou o soldado fixo numa praça portuguesa. O soldado levou-o para a cama ao colo, Jim voltou a acordar e o soldado, com um cigarro de haxixe na boca contou-lhe histórias de sereias que faziam com que os submarinos russos e japoneses se perdessem, falou-lhe de um capitão japonês, que tinha um gramofone no seu submarino e em volta do submarino que tocava alto o “Pássaro de fogo” e a “Munequita de Paris” juntavam-se as baleias e as anémonas, e todas as anémonas do mar do Japão dançavam em torno do submarino e quem visse o submarino à noite, via uma mancha colorida que ia até à superfície, e que fazia com que ele não passasse despercebido por causa da electricidade das anémonas. Jim adormeceu, o soldado esperou que ele acordasse. Foi aí que viu o soldado ao seu lado, ficaram um pouco em silêncio, Jim ardia em febre: Foi aí que o soldado, tal como uma personagem de Papini ou Unamuno lhe aconselhou o suicídio e lhe passou para a mão um copo de gin e uma pastilha cor-de-rosa. Jim voltou a pô-la em cima da mesinha pensando que estava a alucinar; Levantou-se caindo em si, tinha duas horas para preparar as malas e ir para o aeroporto. Pensou ficar desta vez, falando mais um bocado com o soldado desconhecido. Ligou a aparelhagem, meteu lá um cd de Gardel e voltou a enfiar-se na cama. Desvaneceu-se no seu pensamento a preocupação em ir rápido para o aeroporto, aceitou o copo e a pastilha cor-de-rosa. O soldado partiu. Não deixou de se olhar ao espelho do armário uma última vez, pálido, extremamente pálido, parecia que uma sombra negra espreitava atrás dele, era o soldado. A imagem ficou gravada no espelho mesmo depois de Jim tombar na almofada e perder os sentidos. Tal como uma imagem fotográfica retida, captada por muitos sensores que paralisaram a sua figura no espelho.

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