Não é particularmente difícil descortinar algum sentido ou préstimo numa antologia de poesia. A sua vocação panorâmica, quer na abordagem da obra de um ou vários poetas, quer na compilação de poemas subordinados a uma temática específica, pode, sem que aos organizadores seja necessário um grande esforço, transformar-se num instrumento de leitura bastante útil, nomeadamente numa perspectiva didáctica e introdutória. Ao mesmo tempo, em termos comerciais, leva grande vantagem sobre qualquer outra forma de editar poesia.
Poemas Com Cinema (Assírio & Alvim, 2010), organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, procura ilustrar “diferentes formas de diálogo da poesia portuguesa dos séculos XX e XXI com o cinema” (p. 11). A ideia base, a comunicação entre o texto poético e o cinema, não é inédita, tanto no estrangeiro – veja-se, a título de exemplo, a antologia Lights, Camera, Poetry! (Mariner Books, 1996), de Jason Shinder – como em Portugal – O Bosque Sagrado – O Cinema na Poesia (Gota de Água, 1986), com escolhas de Jorge Sousa Braga, António Ferreira e Álvaro Magalhães.
É original, contudo, a abordagem. Trata-se de poemas apenas de autores portugueses, e a sua organização submete-se a uma lógica que, à primeira vista, substitui o rigor cronológico ou alfabético por cinco secções que procuram agrupar os poemas a partir da perspectiva em que os organizadores os interpretam na sua relação com a sétima arte. Esta distribuição dos poemas não escapa a algumas críticas, apesar do seu interesse e singularidade. Sempre que os responsáveis por uma antologia com este propósito optam por uma repartição dos poemas diversa das rígidas sequências cronológicas ou alfabéticas, é legítimo ao leitor exigir que essa organização acrescente um significado à leitura ou, pelo menos, que se traduza numa sequência que não faça o leitor passar de um poema para outro como quem anda a tropeçar. Num ou noutro momento, esta antologia cumpre este requisito. A sequência de poemas que evocam filmes de Sergei Eisenstein, que se inicia com um texto de Jorge de Sena (p. 48) e termina com outro de Alexandre Pinheiro Torres (p. 53) ou a sequência imediatamente seguinte, com poemas sobre filmes de Carl Theodor Dreyer, são disso exemplo. Contudo, no cômputo geral esta divisão não empresta à leitura mais do que aquilo que seria eficientemente alcançado com uma organização comum.
Quanto à escolha dos poetas e dos poemas, não há que a questionar, é obviamente pessoal. Aqui e ali vão surgindo poemas de valor inegável – e não só cinéfilo –, alguns até entre os melhores que a poesia portuguesa destes dois séculos nos legou. Há, apesar disto, uma pergunta a fazer: se o diálogo entre a poesia e o cinema é, nas palavras dos responsáveis por esta antologia, “certamente muito mais profícuo do que à primeira vista pode parecer” (p. 13), porquê incluir poemas cuja relação com a arte cinematográfica, por vezes, não têm outro elo que a utilização da palavra cinema? Se ainda se compreende a inclusão de poemas como o fragmento de Aracne (p. 25), de António Franco Alexandre, muito embora o mesmo poema pudesse, perfeitamente, surgir numa hipotética antologia chamada Poesia Com Discoteca, já no poema de António Botto (p. 47) a conexão com o cinema é absolutamente contingente, ao ponto de não fazer grande sentido figurar neste elenco.
A uma antologia devem ser exigidos, pelo menos, um de dois contributos: ter uma perspectiva didáctica e preambular sobre os autores ou temas que a fundamentam; dar aos poemas que a compõem uma leitura renovada. Este último contributo era quase obrigatório para os organizadores de Poesia Com Cinema, uma vez que, de outra forma, não se justificaria a republicação de poemas ainda tão recentemente postos à disposição dos leitores ou de poemas que, apesar de mais remotos no tempo, continuam disponíveis nas estantes de muitas livrarias. Mesmo tendo em conta o risco assumido pelos organizadores na forma de sistematização e apresentação da antologia, o qual deve ser reconhecido – e elogiado –, o produto final raras vezes ultrapassa a mera republicação. Trata-se, assim, de uma opção desafiante mas concretizada sem nenhum risco.
O caso de Uma Antologia de Poesia Chinesa (Assírio & Alvim, 2010) é substancialmente diferente. Não representando um risco complicado de assumir, dada a escassez deste tipo de iniciativas no panorama editorial português, esta segunda edição alargada – e muito – de outra antologia de poesia chinesa, também organizada por Gil de Carvalho, desempenha de forma exemplar a sua função introdutória a este universo poético, oferecendo dele uma leitura panorâmica, completa e coesa, o que, há que reconhecê-lo, era à partida uma tarefa de execução complicada face a essa “massa gigantesca” que é a poesia clássica chinesa “escrita numa língua que se manteve igual durante cerca de 2500 anos” (pp. 19-23).
É este o género de antologia indispensável num universo editorial em que a publicação e a divulgação de poesia estrangeira são tão insatisfatórias. Tirando o caso da poesia espanhola, e mesmo aí releva mais o esforço pessoal dos tradutores – José Bento e Joaquim Manuel Magalhães – que a iniciativa das editoras, quase que se contam pelos dedos as antologias panorâmicas de poesia doutras línguas disponíveis nas livrarias. A ausência de uma boa antologia de poesia inglesa ou italiana do século XX, só para dar dois exemplos, deveria envergonhar as grandes editoras de poesia em Portugal.
Só por isso, este trabalho de recolha e tradução de Gil de Carvalho já seria meritório. Tem, felizmente, outros méritos. Abrangendo cerca de três milénios de poesia, é notável a continuidade que o organizador conseguiu imprimir na leitura, interrompida, por vezes, por poemas que se destacam acima dos outros. Repare-se, por exemplo, neste poema anónimo escrito por volta do primeiro milénio antes de Cristo: “Nasce o sol trabalhamos/ Põe-se o sol descansamos./ Cavamos um poço para beber,/ Lavramos um campo, p’ra comer:/ O Imperador e o seu poder/ – Queremos lá saber!” (p. 49).
Outro sucesso desta antologia é a sua aptidão para exemplificar a poesia chinesa em momentos assombrosos, tanto de humor ébrio – “Vem bêbedo. É o meu karma./ Ajuda-se a entrar. Passa as cortinas/ Recusa tirar a «rica» roupa que traz/ Embriagado e assim há-de ficar/ Bem – melhor que dormir sozinha.” (p. 319) –, como de anotação e reconfiguração do real ao serviço da imagem poética – “A rapariga apanha lótus no Riacho/ Volta o barqueiro cantarolando em seus remos./ Escondeu-se entre os lótus num trejeito/ Por timidez ou vergonha não sai de lá.” (p. 161). A procura do essencial e a depuração não são, como prova esta antologia, uma tecnologia do século XX e XXI. Já há muito tempo os poetas chineses falavam da “primavera insuportável” (p. 157), das chuvas que “lavam da montanha o rosto” (p. 371) ou, até, da mais elementar das lições “Em vida nada, de mais/ Na morte, nada, a mais./ Preciso andar com tempo inteiro/ E é isto: a outra maneira, à ventura.” (p. 315).
Poemas Com Cinema, Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martelo, Assírio e Alvim, 2010: duas estrelas
Uma Antologia de Poesia Chinesa, Gil de Carvalho, Assírio & Alvim, 2010: cinco estrelas
*Crítica publicada no Ípsilon de 22 de Outubro
sexta-feira, janeiro 14, 2011
Duas antologias, duas opções
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