sábado, janeiro 01, 2011

Cronofobia

Sou contemporâneo de Villon
e escrevo às vezes a Montaigne,
arguto mas demasiado absorto
no renome e na sabedoria instável
dos seus livros anotados.

Ouvi ontem, junto de Lady Nevell,
as últimas composições de Byrd
para virginal e pareceram-me
(a primeira pavana, sobretudo)
uma dádiva excessiva à posteridade.

Escrevo estas linhas agora
outrora, olhando de frente
o crepúsculo e as poucas nuvens
que toldam, por desfaçatez,
o céu irremediável de Janeiro.

Corre entretanto o boato de que
Castela se apossou de Portugal
e houve até um poeta obscuro
que preferiu morrer antes disso,
em versos de imponderável beleza.

Não sei. O vinho cola-se-me uma vez mais
aos lábios, cansados peregrinos do amor,
e um galgo aproxima-se devagar
da mão que nunca lerá José Saramago.

- Manuel de Freitas
in [Sic], Assírio & Alvim

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