quinta-feira, dezembro 09, 2010

Voz e Contra-voz

I. DAQUELA VEZ

É de noite. No balcão do club nocturno servem-te a última
sempre com envergonhada compaixão... Mas atrás de ti
o corpo de algum desgraçado, solitário até à loucura,
caído de bêbado de mariposa a larva,
caído de desespero entre ele e ele mesmo,
de onde já não escapará,
recorda-te alguma coisa não alcançada, e veladamente
duas determinadas ladeiras estropiadas pelas rochas,
as árvores de ocasião, a fornicação acumulada na fila das mustelas,
e o brancazul conhecimento dos gaviões.
Entre as ladeiras delirava o riacho
como um punhado de balelas atirado ao rosto do ouvido.
Então eras jovem... Não te davas conta
do quão cruelmente gasto estava o batente do cemitério...
«Outra, por favor!»... Sim, e o sol
era um grande grão como o sangue do pavão,
e tu, através dessa corrente de água, de margem a margem ,
colocavas calhau atrás de calhau...

Ao anoitecer ela os pisou ao atravessar.


II. E HOJE

É de noite. No balcão do club nocturno servem-te a última
com rezingona fadiga. Mas não falemos disso,
não nos conhecemos e tudo sucede como quando nos encontramos nas escadas:
um sobe e o outro desce...
Ali embaixo estás tu agora,
por sorte o rum não pergunta o que te aconteceu,
já que ele não é ainda pó nem saliva
e não lhe chove no túmulo.
O rum é, pois, bom: primeiro bebes depois dele,
como o outono bebe, depois das falsas lágrimas, o vinho das chaminés,
ao aspirar ao deus do momento...
Do momento? Não, permanente e desgarradamente
sabes pelo contrário onde vive aquela que te amava,
ah! Ansiosamente o sabes e é como um milagre.
Mas estás aqui com um desejo tão lascivo e sem saída
que até a paisagem deveria ter um poente derrubado...

- Vladimir Holan
(tradução: RMR)

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