Estou certo de que isso não tem qualquer interesse, mas não faço listas, nem elenco preferências: por autores, género a género, ou saltando modos e gavetas. Suponho que isso faça tanto sentido como listar o melhor bar ou boteco, melhor uísque ou café, a melhor cerveja ou ginja, o melhor dia de sol ou tempestade, etc. Posso, no entanto, dizer que, tendo em conta o ano de 2010, e pensando em qualquer coisa como a poesia que por cá se publica, nada se aproxima de um livro, saído, sem pompa nem alacridade, quase o ano dava a curva: Erros Individuais, de José Miguel Silva.
Quando um poeta passa três anos sem publicar (desde Walkmen, de 2007, com Manuel de Freitas), é legítimo alimentar uma certa expectativa em redor de um livro seu que esteja para sair. Quando um poeta, além do exposto, se mantém equidistante em relação a tricas e mercadejos, a ditos e pregões, firme no seu intento de produzir – avaro nas suas palavras, contido nas suas pistas –, uma obra que está liberta da salsugem do torpe todos os dias, mas que sabe dizer, como poucas, o núcleo fundente que faz esses mesmos dias, então, está-se perante qualquer coisa que se pode aguardar com redobrado entusiasmo. No caso em apreço, a expectativa não foi gorada.
A sequência publicada por Silva sob o título de Erros Individuais é uma poderosíssima e devastadora leitura do tempo e do mundo que nos cabe – que nos vai cabendo (até quando?). Dizê-lo sem a rezinga sabichona de quem desse conselhos, sem a pose de arauto de melhores dias, é, talvez, um dos sulcos por que corre a força deste livro. Por outro lado, a posição – cautelosa, ainda que sumamente consciente, céptica, posto que longe da desistência –, de quem aqui toma a voz, é um dos garantes desta poesia contra a demagogia e a banha da cobra. Felizmente, versos destes nunca querem vender nada: sejam ideias, sejam caminhos, projectos ou oásis. E é assim que a poesia de José Miguel Silva – poderei, por certo, dizê-lo – será das poucas que não desliza na ranhura fácil da alienação, nem traz na boca, pronta a colher, a hóstia ou o óbolo. Ser radicalmente, ser, ferozmente, uma voz individual que fala de erros (o qualificativo «individuais» surge pluralizado, o que talvez nos autorizasse a pensar em «universais», como junção de todos os «individuais») que nos fazem e que nós fazemos, poderia ser um fardo custoso de carregar: se esta poesia não demonstrasse – como um fulcro numa balança – um trabalho notável (e, no entanto, discreto) sobre a língua e sobre a disposição dos seus materiais, um investimento sóbrio mas laborioso no modo como as estruturas retóricas e poéticas se passam à prática. A escolha do vocábulo certo – «No lagar da contingência,/ reconhecem quase a gosto/ a astenia da azeitona,/ fazem migas do orgulho,/ fazem figas, queimam velas» –, sem preciosismos pífios, afinal de contas; o manuseio sábio da sintaxe – «As viagens propiciam o descaso,/ certamente, de razão e sentimento./ Doutro modo não se explica que/ assim que vi as casas de colina/ que rodeiam Fiesole tenha logo/ reduzido de seis maços para cinco/ a minha dose de cigarros semanal.» –, mas capaz de manter a respiração conversada e terrestre (sem estratosféricas ‘elevações’ de dicção) do discurso demonstram, se este livro o não dispensasse, altivo e insurrecto, a simplicidade desta língua e a sofisticação que essa mesma singeleza sublima – o topete de um estalo, uma palma rude que o pode dar.
É isto, mais ou menos. Mas não faço listas.
Quando um poeta passa três anos sem publicar (desde Walkmen, de 2007, com Manuel de Freitas), é legítimo alimentar uma certa expectativa em redor de um livro seu que esteja para sair. Quando um poeta, além do exposto, se mantém equidistante em relação a tricas e mercadejos, a ditos e pregões, firme no seu intento de produzir – avaro nas suas palavras, contido nas suas pistas –, uma obra que está liberta da salsugem do torpe todos os dias, mas que sabe dizer, como poucas, o núcleo fundente que faz esses mesmos dias, então, está-se perante qualquer coisa que se pode aguardar com redobrado entusiasmo. No caso em apreço, a expectativa não foi gorada.
A sequência publicada por Silva sob o título de Erros Individuais é uma poderosíssima e devastadora leitura do tempo e do mundo que nos cabe – que nos vai cabendo (até quando?). Dizê-lo sem a rezinga sabichona de quem desse conselhos, sem a pose de arauto de melhores dias, é, talvez, um dos sulcos por que corre a força deste livro. Por outro lado, a posição – cautelosa, ainda que sumamente consciente, céptica, posto que longe da desistência –, de quem aqui toma a voz, é um dos garantes desta poesia contra a demagogia e a banha da cobra. Felizmente, versos destes nunca querem vender nada: sejam ideias, sejam caminhos, projectos ou oásis. E é assim que a poesia de José Miguel Silva – poderei, por certo, dizê-lo – será das poucas que não desliza na ranhura fácil da alienação, nem traz na boca, pronta a colher, a hóstia ou o óbolo. Ser radicalmente, ser, ferozmente, uma voz individual que fala de erros (o qualificativo «individuais» surge pluralizado, o que talvez nos autorizasse a pensar em «universais», como junção de todos os «individuais») que nos fazem e que nós fazemos, poderia ser um fardo custoso de carregar: se esta poesia não demonstrasse – como um fulcro numa balança – um trabalho notável (e, no entanto, discreto) sobre a língua e sobre a disposição dos seus materiais, um investimento sóbrio mas laborioso no modo como as estruturas retóricas e poéticas se passam à prática. A escolha do vocábulo certo – «No lagar da contingência,/ reconhecem quase a gosto/ a astenia da azeitona,/ fazem migas do orgulho,/ fazem figas, queimam velas» –, sem preciosismos pífios, afinal de contas; o manuseio sábio da sintaxe – «As viagens propiciam o descaso,/ certamente, de razão e sentimento./ Doutro modo não se explica que/ assim que vi as casas de colina/ que rodeiam Fiesole tenha logo/ reduzido de seis maços para cinco/ a minha dose de cigarros semanal.» –, mas capaz de manter a respiração conversada e terrestre (sem estratosféricas ‘elevações’ de dicção) do discurso demonstram, se este livro o não dispensasse, altivo e insurrecto, a simplicidade desta língua e a sofisticação que essa mesma singeleza sublima – o topete de um estalo, uma palma rude que o pode dar.
É isto, mais ou menos. Mas não faço listas.
- Hugo Pinto Santos
Sem comentários:
Enviar um comentário