Apesar de esta edição portuguesa a isso não fazer qualquer referência, Estado de Excepção (Edições 70, 2010) é a segunda parte de um outro livro de Giorgio Agamben (1942), Homo Sacer, publicado em Portugal sob o título O Poder Soberano e a Vida Nua – Homo Sacer (Editorial Presença, 1998). A estreita ligação entre as duas obras, estabelecida em grande medida a partir de um dos conceitos centrais na teorização política de Agamben, a ideia de vida nua, consubstanciar-se-ia num importante elemento de interpretação do texto que, infelizmente para o leitor português, nem o tradutor nem o editor optaram por acrescentar. A conceptualização desenvolvida em Estado de Excepção é, sem dúvida, devedora desse obscuro e arcaico conceito de Direito Romano – homo sacer –, que o pensador italiano acordou do sono de mais de dois milénios. Este “acordar” tardio é tributário dos trilhos políticos percorridos no último século. A proximidade de leitura e de compreensão entre os dois textos é tal que esta segunda parte recorre não poucas vezes a conceitos anteriormente expostos e estudados em Homo Sacer, como o de Friedlosigkeit (“perda de paz”) ou o de wargus (aquele que, no Direito germânico medieval, ficava numa situação de desprotecção total relativamente à sua comunidade e cujo estatuto era simbolizado na figura do lobo).
O que é o estado de excepção? Numa formulação simples, corresponde à faculdade supostamente inerente ao exercício da soberania de suspender/transcender a ordem jurídica face a uma situação de conflito interno extremo e em nome da preservação do bem comum. Este estado de excepção, enquanto estado de excepção constitucional, surgia, por exemplo, no controverso artigo 48.º da Constituição de Weimar que tanto ocupou o juspublicistas alemães nos tempos que antecederam a ascensão do Terceiro Reich. Trata-se, assim, de um mecanismo que se situa numa zona cinzenta entre democracia e absolutismo e entre facto político e Direito, sob o qual paira um dos maiores desafios jurídicos: como disciplinar juridicamente aquilo que, pela sua natureza, ao pretender ultrapassar a disciplina jurídica existente, não deveria ser disciplinado?
Tendo presente a concepção do estado de excepção, herdeira do pensamento de Carl Schmitt (1888-1985), um dos mais polémicos pensadores do século XX, Agamben propõe-se indagar acerca dessa “terra de ninguém entre direito público e facto político, e entre ordem jurídica e vida” (p. 12) na qual se movem os meandros do estado de excepção. Este propósito encontra-se, desde logo, implícito na epígrafe do livro, ao subverter a célebre máxima de Alberico Gentili, “Sileti theologi in munere alieno” (Calai-vos teólogos naquilo que não vos diz respeito), transformando-a numa questão/acusação particularmente interessante no tema do estado de excepção e da sua inserção na teoria política: “Quare siletis juristae in munere vestro?” (Porque vos calais juristas naquilo que vos diz respeito?). Jogando com os potenciais sentidos da expressão “in munere” – uma vez que a palavra “munus” significa, em primeira linha cargo, ofício ou serviço, mas tem igualmente a acepção secundária de favor, graça, presente ou benfeitoria –, Giorgio Agamben inicia, com esta provocação preambular, o seu esforço de resposta à conceptualização do estado de excepção devedora da construção canónica de Carl Schmitt, em especial no seu diálogo com a tese de um outro pensador alemão, Walter Benjamin, desenvolvida no texto de 1924, Zur Kritik der Gewalt (Para uma Crítica da Violência). Carl Schmitt arquitectou, como Giorgio Agamben não deixa de reconhecer, “a tentativa mais rigorosa para construir uma teoria do estado de excepção” (p. 55), primeiro na sua obra Da Ditadura (1921) e, posteriormente, na Teologia Política (1922). A ele devemos a originalidade com que liga a questão do estado de excepção à da soberania, ao afirmar, de forma particularmente incisiva, que “O soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção”.
O pensador italiano liga este Ausnahmezustand (estado de excepção) schmittiano, na sua origem, aos conceitos jurídicos romanos de iustitium e auctoritas – cuja compreensão e desenvolvimento não se apresentam como totalmente satisfatórios –, culminando numa teorização do estado de excepção enquanto paradigma de governo, no qual não é, de todo, líquida a distinção entre excepção e regra, o que leva Agamben a concluir, numa formulação especialmente radical, que do “estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de «Estado» e de «direito».” (p. 131). Assim, para Agamben, aquilo que foi concebido como o poder de suspensão provisória da normalidade transformou-se, no testemunho do século XX, na normalidade, tornando a própria ordem jurídica refém dos fundamentos sempre ambíguos e tão passíveis de controlo do poder.
A propósito da complicada relação entre estado de excepção e Direito, pode recordar-se a conhecida lenda do aprendiz de bruxo que invocou um demónio, o qual, posteriormente, escapou ao seu controlo, acabando esse aprendiz por perecer às mãos do terror por si desencadeado. A experiência do século XX e, porque não, da primeira década do século XXI, mostram que não é pequeno o risco de o estado de excepção se transformar num demónio indomesticável invocado pelo Direito, no lugar do aprendiz de bruxo.
Claro que nesta perspectiva, a construção teórica de Agamben desempenha um papel que, embora importante, apenas concretiza com exemplos aquilo que no discurso de Schmitt já se prognosticava. Quase na mesma medida em que o homo sacer do autor italiano se situava bem perto das fronteiras do foe (inimigo absoluto), recuperado para o léxico político por Carl Schmitt, George Schwab (1931) e Julien Freud (1921-1993), o estado de excepção e a teoria política que Agamben constrói à sua volta não escapa a esse “demónio” invocado pela teoria política do jurista alemão: verdadeira “mente perigosa” do século passado.
Uma última nota para os trabalhos de tradução, de Miguel Freitas da Costa, e de revisão: apesar de genericamente competentes, detectam-se alguns problemas no aspecto da revisão, por vezes com impacto indesejável na leitura do texto. Exemplo disso é a utilização da expressão “hostis indicatio” quando o que está escrito no original é, antes, “hostis iudicatio”.
O que é o estado de excepção? Numa formulação simples, corresponde à faculdade supostamente inerente ao exercício da soberania de suspender/transcender a ordem jurídica face a uma situação de conflito interno extremo e em nome da preservação do bem comum. Este estado de excepção, enquanto estado de excepção constitucional, surgia, por exemplo, no controverso artigo 48.º da Constituição de Weimar que tanto ocupou o juspublicistas alemães nos tempos que antecederam a ascensão do Terceiro Reich. Trata-se, assim, de um mecanismo que se situa numa zona cinzenta entre democracia e absolutismo e entre facto político e Direito, sob o qual paira um dos maiores desafios jurídicos: como disciplinar juridicamente aquilo que, pela sua natureza, ao pretender ultrapassar a disciplina jurídica existente, não deveria ser disciplinado?
Tendo presente a concepção do estado de excepção, herdeira do pensamento de Carl Schmitt (1888-1985), um dos mais polémicos pensadores do século XX, Agamben propõe-se indagar acerca dessa “terra de ninguém entre direito público e facto político, e entre ordem jurídica e vida” (p. 12) na qual se movem os meandros do estado de excepção. Este propósito encontra-se, desde logo, implícito na epígrafe do livro, ao subverter a célebre máxima de Alberico Gentili, “Sileti theologi in munere alieno” (Calai-vos teólogos naquilo que não vos diz respeito), transformando-a numa questão/acusação particularmente interessante no tema do estado de excepção e da sua inserção na teoria política: “Quare siletis juristae in munere vestro?” (Porque vos calais juristas naquilo que vos diz respeito?). Jogando com os potenciais sentidos da expressão “in munere” – uma vez que a palavra “munus” significa, em primeira linha cargo, ofício ou serviço, mas tem igualmente a acepção secundária de favor, graça, presente ou benfeitoria –, Giorgio Agamben inicia, com esta provocação preambular, o seu esforço de resposta à conceptualização do estado de excepção devedora da construção canónica de Carl Schmitt, em especial no seu diálogo com a tese de um outro pensador alemão, Walter Benjamin, desenvolvida no texto de 1924, Zur Kritik der Gewalt (Para uma Crítica da Violência). Carl Schmitt arquitectou, como Giorgio Agamben não deixa de reconhecer, “a tentativa mais rigorosa para construir uma teoria do estado de excepção” (p. 55), primeiro na sua obra Da Ditadura (1921) e, posteriormente, na Teologia Política (1922). A ele devemos a originalidade com que liga a questão do estado de excepção à da soberania, ao afirmar, de forma particularmente incisiva, que “O soberano é aquele que decide sobre o estado de excepção”.
O pensador italiano liga este Ausnahmezustand (estado de excepção) schmittiano, na sua origem, aos conceitos jurídicos romanos de iustitium e auctoritas – cuja compreensão e desenvolvimento não se apresentam como totalmente satisfatórios –, culminando numa teorização do estado de excepção enquanto paradigma de governo, no qual não é, de todo, líquida a distinção entre excepção e regra, o que leva Agamben a concluir, numa formulação especialmente radical, que do “estado de excepção efectivo em que vivemos não é possível o regresso ao Estado de direito, visto que estão agora em questão os próprios conceitos de «Estado» e de «direito».” (p. 131). Assim, para Agamben, aquilo que foi concebido como o poder de suspensão provisória da normalidade transformou-se, no testemunho do século XX, na normalidade, tornando a própria ordem jurídica refém dos fundamentos sempre ambíguos e tão passíveis de controlo do poder.
A propósito da complicada relação entre estado de excepção e Direito, pode recordar-se a conhecida lenda do aprendiz de bruxo que invocou um demónio, o qual, posteriormente, escapou ao seu controlo, acabando esse aprendiz por perecer às mãos do terror por si desencadeado. A experiência do século XX e, porque não, da primeira década do século XXI, mostram que não é pequeno o risco de o estado de excepção se transformar num demónio indomesticável invocado pelo Direito, no lugar do aprendiz de bruxo.
Claro que nesta perspectiva, a construção teórica de Agamben desempenha um papel que, embora importante, apenas concretiza com exemplos aquilo que no discurso de Schmitt já se prognosticava. Quase na mesma medida em que o homo sacer do autor italiano se situava bem perto das fronteiras do foe (inimigo absoluto), recuperado para o léxico político por Carl Schmitt, George Schwab (1931) e Julien Freud (1921-1993), o estado de excepção e a teoria política que Agamben constrói à sua volta não escapa a esse “demónio” invocado pela teoria política do jurista alemão: verdadeira “mente perigosa” do século passado.
Uma última nota para os trabalhos de tradução, de Miguel Freitas da Costa, e de revisão: apesar de genericamente competentes, detectam-se alguns problemas no aspecto da revisão, por vezes com impacto indesejável na leitura do texto. Exemplo disso é a utilização da expressão “hostis indicatio” quando o que está escrito no original é, antes, “hostis iudicatio”.
*texto publicado na edição de hoje do ípsilon, com algumas adendas que certas pessoas me fizeram ver que fui parvo em não incluir no original.
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