domingo, novembro 21, 2010

Zapping generation ou a queima das fitas

Sacudidos pelo urro
de batuques hormonais,
em demónico torpor,
dançam toda a treva
os aziagos engenheiros
do futuro Portugal.
Injecções de adrenalina
sob a túnica de Nesso.

Perseguem-nos anúncios,
adulam-nos doutores,
perguntam-lhes as horas.
Todos lhes invejam
a leveza com que saltam
nos estádios, nas manifes
indolentes, nos concertos
em que perdem o Verão.

Tufados de gritinhos
e de sáfio mal-estar,
amontoam-se em vazio,
comunicam por farrapos,
reinvindicam o direito
a liberdades consumíveis,
deixam lixo e desperdício
nos lugares por onde passam.

(Um dia iremos vê-los,
cotovelos levantados,
a correr pelos empregos:
decididos na lisonja,
na virtude nem por isso,
condenando quem não trepa
pelo mesmo precipício
de cristão capitalismo.)

Na cal dos soporíferos
desabam os melhores
um oriente tumular.
Acabam sepultados
no calão de sentimentos
irrisórios, deformados,
refutando o faz-de-conta
do progresso social.

(Vemo-los, a estes,
no declínio da cidade,
servidores de duras drogas,
a fazerem-nos sinal
de que têm um lugar
para as nossas viaturas
alegóricas do bem
e dedutíveis nos impostos.)

Juventude, cefaleia
sem cabeça, rebuçado
de beleza para bocas
de cartaz publicitário,
alvorada do desastre
que se espera, no capítulo
farpado, derradeiro,
deste conto de terror.

Não me preguem, por favor,
o cantar da juventude,
tenho gelo nas orelhas,
já não ouço mais que sono.

- José Miguel Silva
in Erros Individuais, Relógio D'Água

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