a perder coisas pelo caminho. Sabia agora
que perder era uma incisão na pele,
e então uma coisa por aí caía com o som veloz
de um crepitar eléctrico: um pássaro voando
raso sobre o fio de um rio. – Perder é uma falha
na ordem do mundo contíguo ao meu corpo
à mão que escreve a minha voz.
Essas coisas caem como coisas caindo, porque é
da natureza das coisas o caírem na estação antepenúltima
e ardente, naquela sazão que ardendo se enfria.
Ou como um braço – antebraço – e mão: assim.
Assim abandonado no fim a mão que esquece.
caem com a tarde unhas e dedos, os dentes frios
descem a sua queda até aos pulmões que explodem.
Essas coisas do mundo, no mundo as perdia;
porque só há o mundo: os mundos – isso que nos faz
e nos sonha e por vezes nos perde. Isso que é feito
do que de nós cai e assim regressa ao lugar onde nascemos.
Isso que declinando é como se partisse em voo. E no ar
se dissolvesse como um pequeno fogo frio; um simulacro
que voa escrevendo-te na pele mais um sulco, um vinco,
a linha da vida: uma inscrição ou
a rápida queimadura de uma asa trémula.
É assim: perdes uma coisa – ela cai de ti
e caindo como uma pedra numa página de água
o mundo estremece acende-se e ressoa como
se fosse uma caixa de música, um pouco grande
um pouco antiga. Uma caixa de música que fosse
a verdadeira fórmula do mundo, a pequena forma
como em sonhos ele a si próprio se vê, e não a ti.
Tu que de facto o ouves como se ele fosse
essa caixa de música: uma imagem da tua
da nossa infância de todos,
já um pouco tarde demais pelo século XX dentro.
Pelo século XX fora. – Fora! Fora!
Se fosse hoje um século e trinta anos antes; ou
depois de hoje o tempo que for; tivesses agora 20 anos
e a alma grande e livre de um carregador de pianos
tu: eu plantaríamos essa caixa de música no cimo dos Alpes.
E então ela soaria só para ti e para os bárbaros deles:
os migrantes que acampando invadem submergem
e conspurcam os jardins suspensos da Europa:
os antigos e magnificentes hipermercados.
Mas ao cimo da colina chegaram já os novos deuses
e os quatro cavaleiros que a estrela de urânio guiou.
Isso é mais uma coisa que perdeste: distraído
não viste de Europa o emocionante rapto.
Não o raptus em que ela seria um arco de som
um acidente da voz que vibrasse e entrançaria
a curvatura dos mundos. Não o grande salto em altura
sobre a irisação solar e a tez escura e misturada das gentes
nas duas margens do Mediterrâneo. Não, é apenas
o velho ardil do espírito absoluto que ascende de elevador
e abençoa a imagem do mundo que a lepra devora:
a falsa Eurídice, Cassandra a escrava e a perdida Dinamene.
Folhas caducas, órgãos de nada, as coisas deiscentes
caem segundo o seu nome. Afundam-se como vermes
saciados no leito dos rios que secaram e são agora riscos
nas mãos desertas de onde a invenção emigrou.
Perdeste a caixa-de-música, perdeste a terra e a dança.
Assim um homem se desmorona: palavra
por palavra. E é então a surda ruína de uma árvore
uma árvore arruinada: um realejo de palavras roucas.
- Manuel Gusmão
in migrações do fogo, Caminho
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