Esta viagem de Bloom parece ser feita na horizontal. Sai de Lisboa vai a Londres, a Paris, a Praga, depois Índia, etc. Porém, na verdade, os movimentos de Bloom são mais os de uma queda. Um movimento na vertical, de cima para baixo. Como se a personagem estivesse já neste século XXI em que o mundo está todo descoberto e mais ou menos domesticado, como se estivesse portanto num solo muito baixo e mesmo assim ainda caísse mais. Os seus movimentos ao longo da viagem são muito os movimentos de alguém que está a cair. Uma personagem sem qualidades, mas em queda. E o que parece é que é uma personagem que se entedia com a queda. Não tem medo, não fica desesperado, não faz um balanço último da sua vida. Não passa tanto por questões políticas, colectivas, por eventuais falhanços ideológicos ou do capitalismo. É muito mais uma questão centrada no indivíduo. O grande movimento do século XXI parece-me, é o da queda.
__________________________O seu pessimismo antropológico é total, é difícil encontrarmos nas suas personagens atitudes humanamente decentes; não há o risco de esse negrume se tornar programático, determinista?
"Uma Viagem à Índia" é atravessado pela ironia e humor que deslocam e boicotam a tensão. Bloom é alguém que não se leva a sério. De qualquer maneira, a questão principal é que em 2010 escrevemos depois de vermos e compreendermos o século XX. A brutalidade dos acontecimentos do século XX exige, a qualquer escritor, um pessimismo antropológico firme. É uma responsabilidade moral e literária. Mesmo que utilizemos a ironia e o humor, de que tanto gosto, mesmo que apresentemos personagens com a delicadeza do Bloom que está fascinado por ter erva de Paris nos sapatos, mesmo quando fazemos isto, o essencial é não esquecermos a potencial maldade e violência que existe em cada pessoa, em cada animal humano. O espaço da literatura pode ser tudo e mais alguma coisa, mas antes de mais é um espaço de vigilância à distância, de uma atenção constante. É um pouco como estar a repetir constantemente: atenção!, não te esqueças do século XX, não te esqueças do século XX.
- Gonçalo M. Tavares
(excertos da entrevista no Ípsilon - 27.10.2010)
segunda-feira, novembro 01, 2010
O grande movimento do século XXI
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