quinta-feira, outubro 28, 2010



A Saudade no Vento


O Pai trazia flores para casa
como se trouxesse os campos
e neles nos ensinasse o valor da vida e da beleza,
o orvalho das manhãs, a canseira do vinho,
o Japão das ameixas e as raízes do sonho.

Porque sabia que os poemas se escrevem com poucas palavras
– sempre as mesmas –
e que a linha do horizonte é uma veia perdida,
a única verdadeiramente necessária,
a que nos leva o sangue de viagem
à lonjura que há dentro de nós.

E, com as flores, o Pai trazia frutos
carnudos, doces, suculentos
como se trouxesse o Verão, a Paz, a Alegria,
uma sesta à sombra da enorme laranjeira
de madeira odorosa, espessas folhas verdes
e cem sóis comestíveis pendurados nos ramos.

Na outra mão, o Pai trazia livros
e as paredes da casa aprendiam o mundo,
quase todo invisível, quase todo impossível
a quem nunca anteviu o futuro de tudo
numa romã morrendo
ou nadou pelas mãos de uma mulher aquática.

As duas mãos repletas, o Pai
trazia, ainda, espalhada pelo corpo, a tristeza das almas
esquecidas de si mesmas na mordaça do tempo,
insensível à morte do nosso amor primeiro,
o amor da liberdade sem palavras pelo meio.

O Pai trazia o hálito do olvido comprado
na taberna da esquina mais esquecida do mundo,
por entre espectros vivos da cidade ambulante,
neles depositada sem esperança de resgate
mas como quem se entrega ao colo de uma puta,
à falta de outro colo tão sujo e inebriante.


Porque também sabia, como coisa mais certa,
o lodo que há no leito dos rios mais cristalinos
e lhes permite alimentar os peixes.

O Pai trazia sempre o cardo e a balsamina,
um verso de palavras com um sabor de antanho,
que tombam como chumbo num algar que há no peito
e lhe fazem vibrar as cordas mais estranhas
da sua água última infestada de ardis.

O Pai trazia, enfim, um homem como os outros,
mas não porque quisesse – acontecia, apenas,
que este lhe preenchia a silhueta breve,
mesmo quando dormia um sono sem repouso,
condenado que fora ao pouco mais além
que há nas flores e nos frutos, nos livros, no bagaço,
nas putas, nas palavras antigas e pesadas
dos santos mais insones dos dias mais iguais.

Só não trazia ódio, nem rancor, nem desejos
mesquinhos e egoístas como o fausto, a preguiça
e a vaidade senil da frase derradeira
com que selar, para sempre, a caixa da partilha.

Porque sabia, ainda, que a certeza é um veneno
capaz de asfixiar o fôlego de lume
em que as vozes se fundem e se fazem sagradas,
indiferentes à crítica de qualquer razão bruta
que não saiba o que é a saudade no vento.

- Miguel Martins
in Proibida a entrada a animais (excepto cães-guia), Língua Morta

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