sexta-feira, outubro 29, 2010

Cobardia

Génio derrotado, com os quatro ossos
escondidos em roupas elegantes, cada um exibe
um rosto atento, em que os outros possam

colar uma suspeita; nos cafés, de dia,
à noite, nos salões: mas em vão cada um procura
decifrar no rosto alheio o regresso

da esperança antiga: e se nele descobre
alguma esperança, é uma esperança inconfessável,
no jogo da procura e da oferta,

e o olhar parece ser apenas o espasmo
de uma ferida íntima: que nos torna exangues,
inertes, descontentes, e conduz a uma greve

dos sentimentos, a uma pausa culpada
da consciência, a uma paz malsã,
que só dá dias cinzentos, de tragédia.

Assim, se olho para o fundo das almas
dos grupos de indivíduos que vivem
no meu tempo, próximos de mim ou meus vizinhos,

vejo que dos mil sacrilégios possíveis
que qualquer religião natural
pode enumerar, aquele que permanece

sempre, em todos, é a cobardia.
Um sentimento eterno - uma forma
de sentimento - petrificado, imutável,

que deixa em qualquer outro sentimento,
directa ou indirecta, a sua marca.
É essa cobardia que faz do homem um descrente.

É uma espécie de profundo impedimento
que rouba força ao coração do homem,
calor ao raciocínio,

que o faz falar da bondade
como se fosse só comportamento,
de piedade como se fosse apenas norma.

Pode torná-lo feroz, por vezes,
mas sempre o torna prudente:
mesmo que ameace, julgue, ironize, escute,

está sempre, intimamente, apavorado.
Não há ninguém que escape a esse medo.
Por isso, ninguém é, de facto, amigo ou inimigo.

Ninguém pode sentir uma paixão verdadeira:
a chama apaga-se de repente,
como por resignação ou arrependimento,

nessa antiga cobardia, nessa hormona
misteriosa que os séculos engendraram.
Reconheço-a, sempre, em qualquer homem.

- Pier Paolo Pasolini
(tradução de Maria Jorge Vilas de Figueiredo)
in Poemas, Assírio & Alvim

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