sexta-feira, outubro 29, 2010


Anthero Areia & Água, Armando Silva Carvalho, Assírio & Alvim, 2010


Em famosa carta a Wilhelm Storck, Antero falava de «uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana». Anthero Areia & Água cria-lhe uma autobiografia em fiapos, uma apocrifia poética capaz de apropriar-se (sem arcaísmos) da raiz anteriana para florescer com outra seiva, mais estranha e brutal, a da (re)invenção, mais de cem anos após esses «dois tiros/ Filósofos» (p.60), justamente, geometricamente desferidos: «Na boca,/ Exactamente,/ Sem qualquer espécie de retórica.» (p.7). Um percurso que a insidiosa, subterrânea, operação de sabotagem de Armando Silva Carvalho – «Fraques, ervilhas, cornetins, colchões, lampreias de ovos/ (de imortal ovário)» (p.32) –, em ecos e repercussões fónicas e semânticas – «As palavras ressoam, ressonam, no sono incontinente/ De quem trabalha o corpo noutros corpos» (p.33), soube caldear para o destempero, para o sem regresso da criação, como se fosse do zero – sem, no entanto, inevitavelmente o ser.

O poema não ficou escravo de um modelo retórico e estilístico, de uma época, apenas pressuposta, antes se subverteram fronteiras, por via de uma certa atemporalidade – «A ética também é irmã/ Do efeito de estufa das ideias» (p.41) – sabiamente perversa, que cruza o pior de dois mundos – «O presente alimenta-se da confusão dos euros e muito futebol.» (p.86), para deles extrair uma súmula muito pouco heróica, de granjeios assinaláveis. O tempo do poema, por um lado, centra-se num ponto retoricamente formulado para ser o do presente; o seu tempo é, porém, o do abismo, o da suspensão. O poeta, esse, é, aqui, duplamente o agente de um tempo que quase o não é, o canal de uma temporalidade desprovida de nexos seguros. Uma situação que se engendra, igualmente, nas sementes imponderáveis deixadas nas frestas dos poemas – «Falemos de pureza/ Como quem fala de casas» (p.16), onde se activa a lembrança do Herberto de «Falemos de casas, da morte. Casas são rosas/ para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança/ nos abandona para sempre.» Como em «Pesado lodo às pobres vestes preso,/ Quem lho atirou aos pés de desgraçada?» (p.17) parece reviver o Pessanha de «Ó Madalena, ó cabelos de rastos», sombriamente presente, ainda, nesses «pedacinhos de osso» (p.20), contíguos à ambiência assustadora de uns «poços de luto/ No fundo do coração» (id.). Por outro lado, um poeta e uma obra como o inviável Soares de Passos, e o seu ominoso «Noivado do Sepulcro», conhece, a certo trecho, uma notável descaracterização que o deixa reconhecível, mas apenas como eco distante, neutralizado – «Ia alta a lua nas mansões da vida» (p.28). De resto, essa acção de submersa evocação é sibilinamente estendida à própria poética de Antero, nos seus motivos e gestos estilístiscos, como até na brevíssima alusão a um título da produção anteriana como Raios de Extinta Luz – «Entre a beleza funérea/ E a pouca areia e água em que vejo afundar-se/ A minha vida/ Corre a extinta luz de um mundo/ Já sem mundos» (p.9). Estratégia reforçada pela máscara de uma primeira pessoa que tem menos de extravagância do que de um trágico medido a ferros – «Talvez eu tenha dito, numa estrofe aguda,/ Num soneto brônzeo em que ninguém hoje toca,/ E no qual o solene ressoa» (p.9) –, por uma tomada de consciência da tensão entre o tempo do autor e o seu estatuto hodierno, simbolizado, talvez, a título de exemplo, nas objurgatórias com toda a marca epocal e temática do poeta dos Sonetos – «Ó pobres flores pensantes, do mal, do bem» (p.83) –, como nas antinomias (ir)resolúveis que são, bastas vezes, o núcleo dos seus poemas – «A morte é sempre morte ou vida» (p.83).

A «autópsia ao século que nascia» (p.43) é, sobretudo, uma análise ondulante e imponderável de qualquer século – «tudo é ou parece descontínuo» (p.53) –, de qualquer caminho para a morte, tomando por base o edifício poético e filosófico de Antero, esse «palácio de ideias, no dizer de Sérgio,/ Que durante tanto tempo construíste» (p.7).

Nunca deixa de ser um poeta do século XXI a escrever sobre/como Antero, esse fascinantemente contraditório «condenado à cabeça» (p.65) – e a própria grafia Anthero cria a ilusão de distância e a fantasia histórica. Felizmente para a poesia, nunca envereda pelo pitoresco (pinturesco, como então se diria) e refaz a partir do ponto desequilibrado em que se encontra – por acúmulo de informação e de reflexão –, tentando, conseguindo, que o saber não embote a criação, a trabalhada espontaneidade do fazer do poema. A fecunda contradição de Antero, «entre a neve do luxo e a leve, rigorosa seda/ Do Infinito» (p.23), é a do aristocrata tentado pela luta do povo, o homem com posses que quis aprender o mister de tipógrafo, que mergulhou nas lúgubres condições do operariado – intoxicado por «ilusões de proletário» (p.22) –, mas que se deixava enlevar pelas miragens do ideal – «Do mundo vário, da turba hostil que sempre desfalece/ Como a areia e a água num sonho/ Embevecidas» (p.20). Uma contradição cabalmente enunciada, por exemplo, num verso em que «o corpo da mente» (p.13) une, conciso, pólos discordes, de uma rede existencial e poética em malha bem apertada no poema. A neurose de Antero – um passante espectral em adiado, permanente, «turismo da morte» –, a neurastenia, como se diria, então, é disposta no poema em esquiços narrativos, evocativos de um Antero «enfermo de feminina doença» (p.28), remexidos pela disposição desreguladora dos versos.

- Hugo Pinto Santos

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