sábado, setembro 18, 2010

O Taberneiro, Miguel Martins, Poesia Incompleta, 2010

Há registos, mais do que outros, difíceis – arriscados. Um deles poderá ser aquele que faz da irrisão a sua faísca e seu propulsor, e de um ritmo estudado na respiração escarninha, a pleura que recobre os foles com que inspira e expira. Será preciso desbastar, muito joeirar, ritmar, pelo vocábulo, como pela sua (dis)junção, as quedas que dá o poema – e as que ajuda a dar, como dizia uma lição antiga –, as que dá a prosa. O que O Taberneiro, de Miguel Martins, recusando a caixa estanque do género, da forma, conseguiu fazer. Curiosamente, o que só beneficiou o seu acerado opúsculo, não seguirá propriamente a via do humor, extravasado por seus mais vulgares – e narcóticos – canais. Antes por um trilho bem menos álacre, é certo, mas de muito mais imponderável força e efeitos bem mais interessantes.

Menos incendiário do que fauno por entre silvas, M. Martins revela-se na sua escrita com um manejo da língua que oscila, proveitosamente, entre o espraiamento (aparentemente) desguardado e uma contenção quase epigramática; e o trânsito das suas palavras não parece obedecer ao ludismo que se lhes poderia apontar, mas corresponde a uma inquietação que elas próprias geram. Nas similitudes e ecos de efeito pernicioso, no boicote – «Idem Paz» –, assoma uma concepção mais ciente dos códigos do que poderia pensar-se. Em associações que conseguem ser inesperadas, construções que ousam procurar-se por recantos menos triviais, a arte da elipse – «O Taberneiro é da cintura para cima.» – contraria-a, por vezes, uma espécie de repercussão de sentido, que se contém antes do derrame – «Poderia ser centauro. Centenário. Milenar. E é-o: pereneterno.» –, mantendo-se uma capacidade invulgar de dizer desferindo esse imponderável golpe transfigurador – «Da cintura para cima, rabeja-me a hecatombe: barrilada por ventre e o pior é por dentro, valente par de mamas, tão úteis como o apêndice, barba mal semeada para ajudar à festa, e cloaca tabágica a preceito; o reverso é marreco e os dedos com artrite; por dentro da cabeça, para lá do que vos digo.»

A concisão de certas fórmulas, próximas já do minimalismo – «Lisboa, apesar de ti Lisboa.» –, se não é indício de pressa, muito menos de labor apressado, é o dizer condensado de quem afivela numa expressão tão sóbria o que muitos poderiam fazer render, sem lucro que não o de umbigos prolixos, em platitudes vácuas. Como sucedia num registo como Últimos Cartuchos, desde o título, uma translação de efeitos poderosos, de um dizer, mais do que rente às coisas, assente nos sinais mais evidentes (tornados, aqui, tantas vezes, mais desconcertantes) de um certo dia-a-dia – «Há pica-pau. Tabaco só ao balcão. Os produtos expostos são para consumo na casa. Se bebes para esquecer paga antes de beber. O camelo é o animal que aguenta mais tempo sem beber – não seja camelo. O tabaco é pago no acto de entrega.» –, o que poderia redundar em anedota e banalidade, bem por outras vias, descompõe e canta. Uma atenção que consegue ser precisa sem ser preciosista, atenta sem incorrer no documentário, certeira sem embustes – «Esta segunda moda das polaróides, que é a de uma urgência sem futuro.» –, menos um decalque do que uma denúncia, e menos ainda uma denúncia do que uma constatação a quem passa. Por estas palavras, passa, ainda (sobretudo?), o que a arte do autor consegue decantar, deixando bem no fundo, longe das suas palavras, o depósito, a escória, escolhendo, certeiro – «a morte é a forma do amor e o sexo o conteúdo da vida, mas ao contrário do sexo, a morte tira-nos a vontade de beber. O sexo reergue as colunas de entre o Céu e a Terra. A morte torna-os um só». Há temas (?) que o tempo gastou, mas há a possibilidade de tudo voltar a dizer, de novo.

O Taberneiro é o primeiro título de uma chancela que faz da edição de poesia uma aventura perigosa, tanto quanto aliciante – Poesia Incompleta. A ilha da Rua Cecílio de Sousa tem agora os seus ilhéus – a O Taberneiro seguiu-se já A Nova Poesia Portuguesa, de Manuel de Freitas. Pequeno, este livro, traz, uma vez aberto e lido, as tempestades de ventos que não sabíamos ter semeado, ao passar por estas linhas desfeitas por mão (felizmente) áspera. A obra de um autor que não fez ainda (felizmente) as pazes com o mundo e consigo.

[Versão ampliada de um texto originalmente publicado no «Actual», Expresso, 18 de Setembro, 2010]

- Hugo Pinto Santos

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