sábado, setembro 25, 2010

Contraste

Num balanceio sonolento, a luz
passa os dedos entre urzes
e dedaleiras bravas rompendo-as
em flor, densa
incandescência. Vagueias
melodiosamente neste silêncio
enquanto o pólen te assenta
na garganta.

E quando, olhando para trás,
dizes tudo, a voz enche-se de súbita
doçura. O poema nasce
com essa sombra debruçando-se
sobre o tanque, a afundar-se
no teu reflexo.

Frutos rachados
nas pedras, sua carne doce abrindo
em delicados relevos: a beleza vencida
destes pequenos altares. Uma fé
sem deuses, sem mais ninguém.
E é como uma prece que soa
o manso ruído das cigarras, tricotando
as horas da tarde.

Por entre veigas e outeiros, as cercas
e os arames – vagos limites de um frágil império.
Há aqui só umas poucas casas baixas,
de paredes escalavradas e a perdida brancura
da cal onde o tempo vem, de há muito,
escrevendo as suas memórias.

Como no postal de um sonho:
tufos de erva e ninhos de hera
abraçando a fuselagem de um velho
avião que por ali, no seu repouso,
fixa tristemente os céus.

Uma mulher sentada num pneu.
Olhos deliciosamente
escurecidos que acham os teus.
Suado, o cabelo desenhando-lhe
caracóis imperfeitos na testa – recordações
deixadas pelos anjos. Tem um sinal
ao canto dos lábios e o assobio que neles
demora não é para ti. No colo
tem côdeas para os pássaros.

Mas então despertas nalgum lugar,
qualquer cidade: ruas antigas, estreitas,
imitando a dor, um reino ordinário,
povoado de ecos e murchos
vultos atravessando a noite.
Uma chuva cai por instantes
entre restos de conversas, acompanha
até ao fim uma canção cortada, sem melodia
ou letra a que vinhas seguindo o rastro.

Depois toma conta de ti um perfume
cansado há dias em outra pele. Um timbre
comum no jeito de nos calarmos. Podias
dizer-lhe alguma coisa, mas o quê?
Perdido o mistério, a carne apodrece
tão depressa, e os corpos, como religiões
abandonadas, já nada prometem, fedem
apenas. Cadáveres antes de tempo.

Levando o caminho de memória,
regressamos tão sós a estes minúsculos
quartos onde a insónia espalha
os seus terríveis girassóis e nos entrega
aos jogos desinteressados do tédio,
partilhando versos com as aranhas da casa,
entretecendo ninharias.

1 comentário:

Cristina Gomes da Silva disse...

Que bem se escreve por aqui! :-)