Não é impunemente que se escreve um livro como Biografia, de David Teles Pereira, e se concebe um conjunto de poemas como corpo vivente, dividido em cinco passos – «O Sangue», «Os Ossos», «A Cinza», «A Terra», «A Lei» – que constituem outros tantos poemas. Ainda que não se queira forçar a nota, ou inquinar leituras, é difícil não pensar num peculiaríssimo pentateuco. De resto, vive nestes versos algo da sombria poesia vetero-testamentária – «De repente, um grito atravessou o céu e senti o seu cheiro agre./ Tomei-o por divino: eu caminhei lado a lado com Enoch.» (p.10) –, um eco da sua fundadora força rítmica – «Senhor, já não sinto o pulso ao meu sangue e era tão imenso/ o meu sonho, mas os seus lábios estão pálidos e quietos.» (p.18) –, lastro obscurecido da sua voz delida – «Nessa mesma noite ensinaram-me/ que Deus desenha o tempo à régua e nunca ao compasso/ e que para Ele os olhos não têm horizonte.» (p.26). Não será, talvez, abusivo pensar em Mallarmé – «um livro que fosse um livro, arquitectural e premeditado, e não recolha das inspirações de acaso» –, ainda que nem de acaso nem de lance de dados aqui se trate. O fortuito não parece ter tomado conta destes versos, nem ter presidido à sua génese; e os trilhos do seu sentido encontram-se a meio caminho entre a pesquisa de uma alegoria e a concretíssima dicção das coisas mais terrestres.
A peste indescritível da história, que preconiza os seus fautores e seus escribas mais ou menos discretos, encontrou neste poeta um registador oblíquo – «O meu sangue andou por bordéis no norte da Europa e participou/ activamente na compra e venda de carne tão branca que,/ no passado, teria sido considerada aristocrática e enferma.» (p.9). O inviável coberto da fábula, incerta ossatura do mito, longe de ciciados, como em mistério de poucos, são esburgados, com laivos de refractário – «Deus já não é aquele Deus despido que o meu avô,/ em segredo, me ensinou a glorificar nas notas/ de um cântico demasiado escuro para ser tido por religioso./ Eu sou uma sombra, tive outro Criador./ Talvez mereça um banho em Auschwitz./ Eu sou aquele que ao fim de tantos séculos/ apenas se consegue definir pelo seu oposto,/ isto é, pelo seu inimigo.» (p.14).
As narrativas – «A minha irmã, de nome grego e impuro, escolheu ser vegetariana,/ em forma de protesto para com esta ascendência judaica,/ bárbara através das mãos, obcecada em sangrar/ pequenos animais peludos até à última gota.» (p.9) –, que os versos não produzem propriamente, mas que acabam por viabilizar – por rasto, por vestígio verbal e humano –, cruzam, a um sol enviesado, afim da trajectória da elipse, os tempos e as suas pregas, os indícios tão breves de uma passagem marcada pela tensão entre finitude e um eco imorredoiro – «É claro que eu sou exactamente assim,/ um paradoxo existencial apenas plausível/ na transição entre séculos: casaco com braçadeira/ envergando uma estrela de seis pontas/ e estados de espírito a fazer lembrar a Jedwabne.» (p.13)
O lugar destes poemas concentra um nódulo particularmente aliciante de onde partem vectores como o tempo, modalizado pelo tratamento das narrativas, pela releitura de esbatidos caracteres, pelo trabalho da linguagem, que não repudia a concisão das suas fórmulas mais cortantes, em que por vezes o premente – «Deve ser genético.» (p.13) – oscila em contraponto com o permanente – «É tradição entre os nossos acreditar que para lá do/ oceano fica uma terra que nos foi prometida,/ onde um rei pode ser encontrado a caçar animais/ cujas peles brilham mais que o exército de Tito/ a marchar passo a passo sobre o deserto.» (p.17). Um labor que permite, por outro lado, que respirem os haustos mais amplos de versos que, se tocam a prosa, iludem, sem remédio, esse curso, essa previsão. É um presente gramatical a podar as incidências de um sujeito que se equaciona, rente aos seus dias – «Há dias em que não penso uma só palavra/ que queira dizer-te, dias em que as fronteiras entre os homens/ se encontram permanentemente abertas ao estreitar de mãos,/ como laços de gravatas a fecharem-se sobre o colarinho da camisa.» (p.21) –, como, aqui, num acesso imagético tão prosaico como eficaz (a lembrar como o estranhamento remove a boçalidade, se for enérgica a luta do poeta). Um presente que parece formular a necessidade de pretérito, pela via dos seus possíveis, honestos, registos – «Admitir maternidade nestas putas de livros, à falta de linhagem feminil/ que justifique a brandura da nossa crónica,/ nunca como um truque, mas como uma tragédia» (p.21). Mas é sobretudo um sujeito que se reequaciona e questiona, sem pompa, nem algazarra, com a tentativa de um dito – «Uma fé inexistente talvez tivesse sido uma fé melhor,/ no extenso bosque do meu peito negro,/ com o meu avô, com o meu pai e com os seus olhos vazios virados para Leste.» (p.26) Alguém para quem a escrita não é apaziguamento nem solução, mas coisa em aberto, sujeita – «Escrever na terra prova uma série de coisas,/ mas provas bem melhores surgem ao apagá-la, porque a terra não se encontra com a terra, nem com o sangue./ Não somos pessoas agradáveis de conhecer.» (p.22)- Hugo Pinto Santos
segunda-feira, setembro 20, 2010
Biografia, David Teles Pereira, Língua Morta, 2010
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