quinta-feira, agosto 12, 2010

Invocação a Joyce

Dispersos em dispersas capitais,
solitários e muitos,
brincávamos como se fôssemos o primeiro Adão,
o que deu nome às coisas.
Pelos vastos declives da noite
que confinam a aurora,
procurámos (lembro-me ainda) as palavras
da lua, da morte, da manhã
e dos outros hábitos do homem.
Fomos o imagismo, o cubismo,
as capelinhas e seitas
que as crédulas universidades veneram.
Inventámos a falta de pontuação,
a omissão de maiúsculas,
as estrofes em forma de pomba
dos bibliotecários de Alexandria.
Cinza, o trabalho das nossas mãos
e um fogo ardente, a nossa fé.
Tu entretanto forjavas
nas cidades do desterro,
nesse desterro que foi
o teu entediado e escolhido instrumento,
a arma da tua arte,
erigias os teus difíceis labirintos.
infinitesimais e infinitos,
admiravelmente mesquinhos,
mais povoados do que a história.
Teremos morrido sem ter avistado
a fera biforme ou a rosa
que são o centro do teu dédalo,
mas a memória tem os seus talismãs,
os seus ecos de Virgílio,
e assim nas ruas da noite perduram
os teus esplêndidos infernos,
tantas cadências e metáforas tuas,
os ouros da tua sombra.
Que importa a nossa cobardia se há na terra
um só homem valente,
que importa a tristeza se houve no tempo
alguém que se disse feliz,
que importa a minha perdida geração,
esse vago espelho,
se os teus livros a justificam.
Eu sou os outros. Eu sou todos aqueles
que o teu obstinado rigor resgatou.
Sou os que não conheces e os que salvas.

- Jorge Luis Borges
(tradução de Fernando Pinto do Amaral)
in Obras Completas, vol. II
Editorial Teorema, 1998

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