de Andrés Navarro
in Un huésped panorámico, XXXVI Premio de Poesía Ciudad de Burgos, DVD Ediciones, Barcelona, 2010, pp. 30-45.
Tradução de G.A.
I
Vista desde a minha altura, esta cidade poderia
ostentar qualquer época, outra raia dentada,
gente que sorri em Agrigento ou Siracusa
em mil novecentos noventa e oito
para esquecer os que tocamos em fotografias
sem nostalgia em Madrid, onde o que interessa
impõe regras, onde um porteiro tossica
em postura de bufo, noite
atrás de noite, sem levantar a vista.
II
A juventude acaba quando uma moeda atirada
a um tanque produz efeito. Mudarás de estado
e de país, distinguirás o conhecido do casual
quando o instinto resulte inútil
e faça frio. Naquele verão, para o Sul, a rapariga
a saltar na poça não era uma solta
estudante ou não estava a pedir boleia. Depois foi necessário
enxugar as toxinas, acordar as crianças,
precaver-se com um mapa da zona.
III
Entre actrizes de pouca consequência rias ontem à noite,
atado à sua provisão de prazer. Agora tudo isto
encolhe os ombros: a porcelana mente
nas prateleiras, o estrado arrefece…
O passado, ao menos, dá a distância a algo fixo,
tanto mais quanto o pedes ao futuro.
Levantas a mão livre à injecção de luz:
a máxima dor não procura
o mínimo contacto com a sua causa.
IV
Um mês se cose ao outro no desabafo dos comboios.
Alguém mede o alcance do seu remorso,
sais de uma cidade
que oferece menos estações ao tempo do que ao espaço.
Os olhos não descansam nas suas órbitas: palmeiras
em itálico, fundos. Dormes atraído por vínculos
que uma vez assumidos já não unem
o tumulto
à ideia de avanço, a predisposição ao gesto.
V
Depois do último acordo, a guitarra exala ao exterior
um vazio idêntico ao que encerra. Depois fica
por imitar, mudar de estado, procurar-nos incompletos
como o hemisfério cantante
de um pulmão
já menos música que ilha. Luz directa,
quando a dançarina se arqueja num último
riso de dor, no fundo da sua boca
um molar de prata pestaneja como um olho.
VI
Reúnem-se em círculos: os delinquentes, as ideias.
A metáfora do frio não convence o bafo
que mascam os cavalos. Nos jardins
rastos sem tribo, aliviam a ponte três pardais.
Podes dizer “venham a mim, amáveis culturistas”
ou “assim serão um dia todas as estátuas”.
Podes encontrar um lugar nesta anatomia
quase humana. A grande-angular do idioma
não chega à música de um dia oco.
VII
E então a felina sede de leite, a menstruação
prematura por excesso de irmãos, a língua desatada
como um nó. Com três partes de árvore e uma de pedra,
pequenos corpos debaixo de gorros de cores vivas
à espera do autocarro escolar. Deslizamentos
curtos – os joelhos muito juntos
como diante dum perigo – entre a aceitação
e a fruta.
Fósforos. Olhar filas de formigas sem ser visto.
VIII
A noite pede fármacos, disciplina.
Um anelo granate num fundo de copo,
uma mulher cansada: menos
não há-de servir. Pendurada do tecto,
a lâmpada balanceia-se como um árabe
em oração. Já remete a hora numerosa
e pensaste em regressar,
falaste apenas para poder murmurar
no ouvido de alguém: eu disse-te.
IX
Sexta-feira, pensas. Com passos taquigráficos
voltar para casa, arquivar-se, não confundir o ócio
com a licantropia
a esta hora em que uma elite
já goza das cervas de genuíno tremor.
O bom das caras é que não acrescentam
nem restam expressão ao vazio. De vez em quando um diálogo
de brânquias debaixo de água, de vez em quando um anzol,
dos lábios, uma orelha sem mais.
X
Irás embora assim, com o teu mapa de últimas vontades
dobrado muitas vezes sobre ti mesmo.
Oxalá que outro inverno se curve em paladar
de uma só noite irreversível, que pronuncie
o teu nome em voz de mãe, que o tráfico de amor
não toque nos simples da tragédia, os simples
mortos: que mãe não duplica o perdão
diante da ideia
de outro feitiço mais forte, que ao seu sobreviva?
XI
Olhos de boi entre os nus soltos
de madeira e a perdida de inocência visual.
Iscas de anatomia que não leva o ânimo
posto a pescar à sobra de ninguém.
És mais que aprovação e nada, menos
que lentidão de fim de Novembro
e antes ou depois
uma oblíqua sensação de telhados.
Tensos duches de chuva na nuca do idólatra.
XII
Nos movimentos guiados pela impressão
daquilo perante o que devemos retroceder;
músicas que se revoltam contra os seus criadores,
artesãos que fundam facas em barro.
Chegas de províncias com trouxas de fruta
envoltas em rascunhos de poemas.
À volta, planícies de cultura sem fim.
Olha: os teus sacerdotes já se apaziguam
nos retrovisores, um a um, antes de desaparecer.
XIII
Molhamo-nos, passamos frio, a roupa estorva
o contacto e o movimento perde
consistência. São palavras como iscas,
porque não há reflexão que ocupe
o oco
com garantias, e o melhor é não esquecer
que onde começa a propriedade
termina a alma de pássaros dormidos
sobre os cabos, por pares e em trios, desliga tu.
XIV
Resumir a vida sem prodígio dos teus antepassados
é mais fácil que refazer o deus das suas crenças.
Os lugares acontecem antes
que os factos que abrigam
e a vida actual deve caber numa bagagem
submetida à vigilância. Fantasmas
de vários génios se propagam nos hangares
do aeroporto
como pó. Não chegarão muito longe…
XV
Pássaros dissecados sonham com bagas de plástico
numa casa de penhor lida em O livro negro,
cenas inventadas pela febre e perguntas
que soam a respostas. Que teimosa
olaria
o que um idiota sabe: fazer identidade subtraindo
privilégios, ausentar-se, em suma, é a história
de todos; a poesia é apenas colocar as mãos
onde as frutas caem.
Sem comentários:
Enviar um comentário