quinta-feira, agosto 19, 2010

(de DEZ SONETOIDES MANCOS)


VI

Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.
Sentidos, sentimentos e outros moluscos

não passam pela finíssima peneira
do funcional. E o sofrimento, ai,
esse nefando pinguim de louça

sobre o que deveria ser, na quiti-
nete do eu, uma austera geladeira…

Que ninguém nos ouça: guarda esse escafandro, meu
filho. Só o raso é cool. A dor é kitsch.



VIII

Eu não disse? Não tinha ninguém
batendo à tua porta a essa hora
da noite, como era de esperar.

ninguém impaciente do lado de fora
com uma pasta cheia de papéis
importantíssimos aguardando apenas

a tua assinatura pra virar lei
em vez de letra morta - e, arrastando os pés,

condescendente, você vem e abre a porta
pra noite escura: ninguém. Bem que eu falei.


IX

Este é o momento exato. Agora.
Outro não vai haver. Aproveita.
À tua frente, a régua, a fruta, o relógio

aguardam o gesto. Que não vem.
Não há nada aqui que se explique:
é só pegar, antes que vá embora.

Hein? Algo ou alguém te chama?
Não. Só a geladeira tendo um chilique.

Pronto. O momento já passou.
Levanta da cadeira. Vai pra cama.

- Paulo Henriques Brito
in Macau, Ulisseia

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