(de DEZ SONETOIDES MANCOS)
VI
Nada de mergulhos. É na superfície
que o real, minúsculo plâncton, se trai.
Sentidos, sentimentos e outros moluscos
não passam pela finíssima peneira
do funcional. E o sofrimento, ai,
esse nefando pinguim de louça
sobre o que deveria ser, na quiti-
nete do eu, uma austera geladeira…
Que ninguém nos ouça: guarda esse escafandro, meu
filho. Só o raso é cool. A dor é kitsch.
VIII
Eu não disse? Não tinha ninguém
batendo à tua porta a essa hora
da noite, como era de esperar.
ninguém impaciente do lado de fora
com uma pasta cheia de papéis
importantíssimos aguardando apenas
a tua assinatura pra virar lei
em vez de letra morta - e, arrastando os pés,
condescendente, você vem e abre a porta
pra noite escura: ninguém. Bem que eu falei.
IX
Este é o momento exato. Agora.
Outro não vai haver. Aproveita.
À tua frente, a régua, a fruta, o relógio
aguardam o gesto. Que não vem.
Não há nada aqui que se explique:
é só pegar, antes que vá embora.
Hein? Algo ou alguém te chama?
Não. Só a geladeira tendo um chilique.
Pronto. O momento já passou.
Levanta da cadeira. Vai pra cama.
- Paulo Henriques Brito
in Macau, Ulisseia
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