terça-feira, agosto 17, 2010

Buda e a parábola da casa a arder

Gotama, o Buda, ensinava
A doutrina da roda da cobiça a que estamos amarrados, e recomendava
Que nos libertássemos de todos os apetites e assim
Sem desejos entrássemos no Nada a que ele chamava Nirvana.
Então os seus discípulos perguntaram-lhe um dia:
Como é esse Nada, Mestre? Todos nós gostaríamos
De nos libertar da cobiça, como tu recomendas; mas diz-nos
Se esse Nada em que então entraremos
Acaso é como a unidade com tudo o que é criado,
Como quando se está na água, o corpo leve, ao meio-dia,
Quase sem pensamentos, assim ocioso na água, ou quando caímos no sono,
Mal tendo consciência ainda, caindo rápido, de que ajeitamos
A manta, se esse Nada pois
É assim alegre, um bom Nada, ou se esse
Nada é simplesmente um Nada, vazio, frio, sem sentido.
Muito tempo ficou calado o Buda, depois disse negligente:
Não há resposta à vossa pergunta.
Mas à noitinha, quando eles se tinham ido,
Estava o Buda inda sentado sob a árvore-do-pão, contou aos outros,
Àqueles que não tinham perguntado, a seguinte parábola:
Outro dia vi uma casa. Estava a arder. O telhado
Era já lambido pelas chamas. Aproximei-me e notei
Que ainda havia gente lá dentro. Entrei na porta e gritei-lhes
Que havia fogo no telhado, incitando-os assim
A que saíssem depressa. Mas aquela gente
Não parecia ter pressa. Um perguntou-me,
Já o calor lhe chamuscava as sobrancelhas,
Como é que estava lá fora, se não estava a chover,
Se não correria vento, se havia outra casa,
E ainda mais coisas destas. Sem responder,
Saí outra vez. Estes, pensei eu,
Morrerão queimados, antes de acabarem de fazer perguntas. Na verdade, amigos,
Àquele a quem o chão não está quente o bastante
Pra o trocar por qualquer outro em vez de continuar nele,
A esse nada tenho a dizer. Assim Gotama, o Buda.
Mas também nós, já não ocupados com a arte de sofrer,
Antes ocupados com a arte de não sofrer e apresentando
Muitas propostas de natureza terrena e ensinando aos homens
A libertar-se dos seus verdugos humanos, supomos
Que àqueles que, à vista das esquadrilhas de aviões de bombardeamento da capital, ainda perguntam
O que é que nós pensamos, que ideia é que fazemos,
E o que vai ser dos seus mealheiros e das calças domingueiras depois duma revolução,
Não temos muito a dizer.

- Bertolt Brecht
(tradução de Paulo Quintela)
in Poemas, Edições Asa

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